"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 1 de outubro de 2016

Peregrinação a Kiev e bailes de máscaras em Moscou (Parte 1)

Catarina com o seu marido, o czar Pedro III e o filho, o futuro czar Paulo I, em 1760, Anna Rosina Lisiewska

A noiva chegara à Rússia, era jovem, sua saúde fora recuperada e as dificuldades envolvendo sua conversão à religião ortodoxa tinham sido superadas. Agora que ela e Pedro estavam noivos, o que impedia um casamento imediato? Um obstáculo difícil de ser vencido até mesmo por uma imperatriz, era a cautelosa opinião dos médicos quanto a Pedro. Aos 16 anos, o grão-duque mais parecia ter 14, e os doutores ainda não conseguiam detectar nele qualquer sinal convincente de puberdade. Achavam que levaria pelo menos um ano até que ele pudesse gerar um filho. Ainda que ocorresse uma gravidez, restariam nove meses até o nascimento da criança. Para Elizabeth, esse tempo - 21 meses - parecia uma eternidade. E como o casamento precisava ser adiado, a imperatriz precisava adiar também a partida de Joana.

Aceitando com relutância esses desapontamentos, Elizabeth decidiu tomar outras medidas em peregrinação a Kiev, a mais antiga e sagrada cidade da Rússia, onde a cristandade fora introduzida pelo grão-príncipe Vladimir no ano 800 d.C. A viagem de Moscou a Kiev, de quase 900 quilômetros, foi sugerida a Elizabeth por seu amante ucraniano, Razumovsky, e inclua Pedro, Catarina e Joana, com suas respectivas comitivas, além de 230 cortesãos e centenas de servos. A caminho, as fileiras de carruagens e carroças com bagagens sacolejavam dia após dia nas estradas infindáveis, infligindo cansaço, tédio, fome e sede aos passageiros. Os cavalos eram trocados frequentemente. A cada posto de muda, oitocentos animais descansados aguardavam a chegada da caravana imperial.

Enquanto os eminentes da corte russa viajavam em carruagens forradas com almofadas de veludo, uma pessoa seguia a maior parte do trajeto a pé. Elizabeth levava muito a sério a penitência e a peregrinação. Caminhando pelas estradas russas quentes e sem sombras, suando com o calor e murmurando orações, Elizabeth parava para rezar em cada igreja de cada aldeia e em cada santuário do caminho. Enquanto isso, Razumovsky, prático e modesto, tanto nas perspectivas terrenas como nas celestiais, preferia acompanhá-la em sua confortável carruagem.

Catarina e Joana começaram a viagem numa carruagem com duas damas de companhia. Pedro seguia em outra carruagem, com Brümmer e dois tutores. Um dia, cansado de seus "pedagogos", como Catarina os chamava, Pedro resolveu se reunir às duas princesas germânicas, cuja companhia ele julgou ser mais animada. Saindo de sua carruagem, ele "entrou na nossa e se recusou a sair", trazendo com ele um dos alegres jovens de sua comitiva. Não demorou para que Joana, irritada com a presença dos jovens, quisesse fazer outra arrumação. Joana tinha uma carroça equipada com pranchões e almofadas de modo a acomodar dez pessoas. Para seu aborrecimento, Pedro e Catarina insistiram em encher essa carroça com outros jovens. "Só deixamos ficar conosco os mais engraçados e divertidos da nossa comitiva", Catarina disse. "De manhã à noite, só fazíamos rir, brincar e ter alegria." Brümmer, os tutores e as damas de companhia de Joana ficaram insultados com essa troca, que ignorava a precedência da corte. "Enquanto nos divertimos, eles ficaram numa carruagem, todos os quatro, mal humorados, repreendendo, condenando, fazendo comentários azedos à nossa custa. Em nossa carruagem, sabíamos disso, e ríamos deles."

Para Catarina, Pedro e seus amigos a viagem não foi uma peregrinação religiosa, mas uma excursão, uma grande brincadeira. Não havia pressa. Elizabeth só caminhava poucas horas por dia. Ao fim de três semanas, a comitiva principal chegou à grande mansão de Alexis Razumovsky em Koseletz, onde esperaram mais três semanas até que a imperatriz aparecesse. Quando finalmente ela chegou, em 15 de agosto, o aspecto religioso da peregrinação foi suspenso temporariamente. Durante duas semanas, os "peregrinos" se reuniam numa sucessão de bailes, concertos e, de manhã à noite, em jogos de cartas tão febricitantes que às vezes 40 ou 50 mil rublos se amontoavam nas mesas.

Enquanto estavam em Koseletz, houve um incidente que gerou uma rusga permanente entre Joana e Pedro. Começou quando o grão-duque entrou numa sala em que Joana estava escrevendo. Num banquinho ao lado dela, estava sua caixa de joias, onde guardava as pequenas coisas que lhe eram caras, inclusive suas cartas. Pedro, de brincadeira, para fazer catarina rir, fingiu remexer na caixa e pegar as cartas. Joana lhe disse severamente que não tocasse naquilo. O grão-duque, ainda se exibindo, saiu correndo pela sala, mas, ao fazer piruetas para se afastar de Joana, seu casaco se prendeu na tampa aberta, jogando a caixa e todo o conteúdo no chão. Joana, pensando que ele tinha feito isso intencionalmente, teve um acesso de fúria. Pedro ainda tentou se desculpar, mas, quando ela se recusou a acreditar que havia sido por acidente, ele também se zangou. Os dois começaram a gritar um com o outro, e Pedro, apelando para Catarina, pediu que atestasse a inocência dele.

Catarina ficou no meio da briga.

MASSIE, Robert K. Catarina, a grande: retrato de uma mulher. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 82-84.

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