"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 21 de julho de 2013

Dissidentes na Idade Média: valdenses e cátaros

A liberdade de religião é um conceito moderno, totalmente estranho à visão medieval. Considerando-se possuidora e guardiã da verdade divina, a Igreja julgava-se obrigada a expurgar a cristandade da heresia - crenças que questionavam a ortodoxia cristã. Para a Igreja, os hereges eram culpados de traição contra Deus e portadores de uma infecção moral. A heresia era obra de Satã; atraídas por falsas ideias, as pessoas podiam abandonar a verdadeira fé e negar a si mesmas a salvação. Aos olhos da Igreja, os hereges não só obstruíam a salvação individual, como também enfraqueciam os alicerces da sociedade.

Para impor obediência, a Igreja usava seu poder de excomunhão. A pessoa excomungada não podia receber os sacramentos ou frequentar os serviços religiosos - punição terrível, numa época de fé. Ao tratar com um governante recalcitrante, a Igreja poderia declarar o interdito sobre seu território, o que na prática negava aos súditos desse governante os sacramentos (embora se pudessem fazer exceções). A Igreja tinha esperança de que a pressão exercida por uma população irritada obrigasse o governante ofensor a mudar de comportamento.

A Igreja também julgava os casos de heresia. Antes do século XIII os bispos locais eram responsáveis pela descoberta e julgamento dos hereges. Em 1233, o papado criou a Inquisição, tribunal especialmente destinado a combater a heresia. Os acusados eram considerados culpados até que fosse provada sua inocência; não tinham direito de saber o nome de seus acusadores nem de ter defesa legal. Para arrancar-lhes uma confissão, era permitida a tortura. Se persistissem em suas crenças podiam ser entregues às autoridades civis para serem queimados na fogueira.

* Os valdenses. Na Idade Média, a dissensão tinha, com frequência, um caráter reformista. Inspirados nos Evangelhos, os reformadores criticavam a Igreja por sua riqueza e participação nas questões mundanas; queriam um retorno à vida mais simples e pura de Jesus e seus apóstolos.

Em seu zelo de copiar a pureza moral e a pobreza material dos primeiros seguidores de Jesus, esses dissidentes reformadores atacaram a autoridade eclesiástica. Os valdenses, seguidores de Pedro, rico comerciante de Lyon, constituíam um desses movimentos. Na década de 1170, Pedro distribuiu suas propriedades aos pobres e atraiu partidários de ambos os sexos. Eles também se comprometiam a ser pobres e a pregar o Evangelho no vernáculo, e não no latim da Igreja, que não era entendido por muitos cristãos.

Os valdenses consideravam-se verdadeiros cristãos, fiéis ao espírito da Igreja apostólica. Irritada com os ataques dos valdenses à imoralidade do clero e pelo fato de que esses leigos pregavam o Evangelho sem a permissão das autoridades eclesiásticas, a Igreja condenou o movimento como herege. Apesar da perseguição, os valdenses sobreviveram como grupo no norte da Itália.


O papa Inocêncio III excomunga os albigenses (esquerda). Massacre contra os albigenses pelos cruzados (direita). Crônicas de Saint-Denis, século XIV

* Os cátaros ou albigenses. O catarismo foi a heresia mais radical enfrentada pela Igreja medieval. Essa crença representava uma curiosa mistura de movimentos religiosos orientais que haviam competido com o cristianismo nos dias do Império Romano. Os postulados dos cátaros diferiam consideravelmente dos ensinamentos da Igreja. os cátaros acreditavam num conflito eterno entre as forças do deus do bem e as do deus mal. Como este, a quem identificavam com o Deus do Velho Testamento, criara o mundo, a morada terrena era má. A alma espiritual por natureza, era boa mas estava presa à carne iníqua.

Os cátaros ensinavam que, como a carne é um mal, Cristo não teria tomado forma humana e, portanto, não poderia ter sofrido na cruz, nem ter ressuscitado. Nem poderia Deus ter nascido da carne má da Virgem. De acordo com o catarismo, Jesus não era Deus, mas um anjo. Para escravizar o homem, o deus mau criou a Igreja, que demonstrava sua maldade buscando poder e riqueza. Repudiando a Igreja, os cátaros organizaram sua própria hierarquia eclesiástica.


Cátaros sendo expulsos de Carcassone em 1229

O centro da heresia catarista era o sul da França, onde já existia uma forte tradição de protesto contra o relaxamento moral e o materialismo do clero. Como os cátaros não se sujeitaram à persuasão pacífica, Inocêncio III pediu a reis e senhores o seu extermínio pela espada. Tendo durado de 1208 a 1229, a guerra contra o catarismo foi marcada pela brutalidade e pelo fanatismo. Sob o sucessor de Inocêncio, os inquisidores dominicanos e franciscanos concluíram a tarefa de dizimá-los.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 178-179.

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