A família de Carlos IV, Francisco de Goya
Na madrugada de 25 de abril de 1821, antes de o dia raiar, a
rainha Carlota Joaquina – acompanhada de seu marido, o rei D. João VI, do filho
D. Miguel, das seis princesas e de quatro mil cortesãos (e de boa parte do
Tesouro Real, mais 50 milhões de cruzados sacados sorrateiramente do Banco do
Brasil) – embarcou na nau que, enfim, a levaria junto com a sua corte de volta à
Europa. Reza a lenda que, ao pôr os pés no navio, D. Carlota teria batido um
sapato contra o outro e dito: “Nem nos calçados quero como lembrança a terra do
maldito Brasil”.
Carlota Joaquina de Bourbon, imperatriz do
Brasil, rainha de Portugal e Algarves. Manuel Antônio de Castro
A rainha de fato odiava o Brasil – e os quase cinco mil dias
que nele viveu não foram suficientes para fazê-la mudar de opinião. Mais do que
ao Brasil, D. Carlota só odiava uma coisa: o marido D. João, com o qual estava
casada havia 36 anos, mas com quem não convivia há vinte. Ainda assim, tivera
nove filhos. Prole tão numerosa num casal que mal podia se olhar gerara
suspeitas: dizia-se que pelo menos cinco dos nove rebentos não seriam fruto de
D. João. De fato, talvez não fossem, embora nem o rei nem a rainha dessem muita
importância para o fato. Além desse desinteresse mútuo, uma outra coisa D. João
e D. Carlota tinham em comum: eram ambos feíssimos.
D. João VI e D. Carlota Joaquina, reis de Portugal. Manuel
Dias de Oliveira
D. Carlota Joaquina de Bourbon, infanta de Espanha, rainha
de Portugal e imperatriz honorária do Brasil, nasceu nos arredores de Madri em
22 de abril de 1775. Aos dez anos de idade, casou-se por procuração com D. João.
Realizada por uma questão de Estado, a união foi vexatória desde o início: num
dos primeiros encontros, a noiva mordeu selvagemente a orelha do noivo e
jogou-lhe um castiçal no rosto. O casal só iniciou sua vida conjugal cinco anos
depois do casamento, logo após a primeira menstruação da princesa. A chegada
dos filhos não mudou em nada o relacionamento entre ambos. Na prática se
comportavam como monarcas inimigos.
De certa forma, D. Carlota e D. João eram mesmo inimigos. Fiel
às origens espanholas, a rainha conspirou com freqüência contra o trono português.
Por isso, os historiadores luso-brasileiros gostam de descrevê-la como uma
bruxa: “A mulher era quase horrenda, ossuda, com uma espádua acentuadamente
mais alta do que a outra, uns olhos miúdos, a pele grossa que as marcas de
bexiga ainda faziam mais áspera, o nariz avermelhado. E pequena, quase anã,
claudicante... uma alma ardente, ambiciosa, inquieta, sulcada de paixões, sem
escrúpulos, com os impulsos do sexo alvoroçados”, escreveu Octávio Tarquínio de
Souza, em sua obra clássica, História dos
fundadores do Império do Brasil.
Retrato de Carlota Joaquina de Bourbon. Artista desconhecido
Uma das mais cruéis descrições de D. Carlota, no entanto,
foi feita pelo genial escritor inglês William Beckford, que a conheceu e
deplorava “suas incessantes intrigas de todos os matizes; seus caprichos
extravagantes, seus atos desumanos de crueldade”.
A verdade é que, feia ou não, D. Carlota lutava pelos
interesses da Espanha – em especial quando estes a favoreciam. Quando Napoleão
rompeu com Madri e entronou o próprio irmão no lugar de Carlos IV, pai de D. Carlota,
ela quis ser rainha do Prata. D. João bloqueou os planos. D. Carlota, então,
fixou-se na casa de praia de Botafogo, onde se banhava nua. Continuou
colecionando amantes (mandando matar a mulher de um deles) e começou a fumar a erva
diamba (hoje chamada maconha). Amazona audaz, montava como homem. Cantava e
dançava o flamenco. Não foi boa mãe, especialmente depois que seu primogênito,
Antônio, morreu aos 6 anos. Seu outro favorito era D. Miguel, tido como filho
do marquês de Marialva. D. Carlota nunca deu atenção para o príncipe herdeiro,
D. Pedro. Ao sair pelas ruas do Rio, era precedida por um séquito de seguranças
que forçavam todos os súditos a se ajoelhar. D. Carlota Joaquina morreu em
Lisboa, aos 54 anos, sem jamais ter retornado à sua amada Espanha.
Retrato eqüestre de Carlota Joaquina de Espanha. Domingos
Sequeira
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática,
2005. p. 143-144.
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