"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O caudilhismo

O movimento de emancipação deu autonomia política aos países da América Latina. Mas o rompimento dos laços políticos não significou a ruptura dos vínculos econômicos e culturais (ideológicos) da Época Colonial. A Conquista e a Colonização haviam estruturado a economia e a sociedade coloniais; a herança colonial impôs também seu peso no processo de formação dos novos Estados americanos.

No plano econômico, a herança colonial persistiu na manutenção da economia produtora de gêneros alimentícios e matérias-primas para o mercado externo, segundo as diretrizes da divisão internacional do trabalho no decorrer do período compreendido entre as Guerras Napoleônicas e a Primeira Guerra Mundial. Essa divisão dos mercados mundiais entre os países capitalistas avançados (Inglaterra, França, Estados Unidos) implicava a formação de economias periféricas ou dependentes nos países da América Latina, da África e da Ásia. Na América, criaram-se verdadeiros enclaves capitalistas, estimulando-se a agricultura de exportação e a exploração de recursos minerais, ativo comércio de exportação e importação, criação de bancos, companhias de seguros, redes ferroviárias etc. Ao mesmo tempo, vastas áreas permaneciam submetidas a uma economia de subsistência e a um estado de empobrecimento crônico. Essa desigualdade de desenvolvimento econômico era uma estratégia necessária do capitalismo internacional, ao qual não interessava que os países latino-americanos tivessem condições de um desenvolvimento capitalista auto-sustentado. Assim, apenas alguns setores econômicos foram modernizados sob o influxo do capital estrangeiro, traduzido em aplicação de investimentos maciços, aquisição de propriedades territoriais, exploração de minas, empréstimos com juros extorsivos etc. 

Nesse contexto, não havia condições históricas para o surgimento de uma burguesia nacional nos Estados latino-americanos, dado o seu comprometimento com o capital internacional. E os poucos grupos capitalistas então surgidos não possuíam, evidentemente, condições concretas para impor a sua hegemonia política sobre a sociedade como um todo. A implantação do capitalismo na América Latina no século XIX não trouxe a unificação, pois não havia praticamente mercado interno ou nacional. A pequena burguesia era fraca, inexpressiva ou até inexistente. A massa da população, majoritariamente camponesa e analfabeta, vivia sob um sistema de relações pré-capitalistas, uma espécie de semi-servidão, e não constituía mercado consumidor apreciável para os artigos industrializados. As classes dominantes eram formadas pelas oligarquias agroexportadoras - e pela burguesia mercantil - esta localizada em centros bem definidos, como as cidades portuárias (Montevidéu, Buenos Aires, Valparaíso).

"Os comerciantes de produtos ultramarinos pensam em termos de mercado nacional, têm a opinião de que tudo aquilo é obstáculo para o livre trânsito das mercadorias deve ser eliminado. Estarão interessados em estradas de ferro, portos, bancos, telégrafos, companhias de seguros, de que não cabe inferir uma grande paixão pelas mudanças sociais. A ambição deles se limita a imprimir certos traços de modernização sobre o existente. Como estão estreitamente vinculados aos grandes produtores para o mercado externo [...] sentem-se pouco propensos a modificar as condições em que se realiza esta produção. Não lhes repugna o recrutamento forçado de mão-de-obra, e a fragmentação territorial. Preferem as grandes propriedades fundiárias. Os proprietários de terras são sua maior clientela, a de consumo suntuário; nem por isso desprezam a multidão de pessoas humildes que adquire roupas e tecidos de algodão importados da Inglaterra, ou chaleiras para servir água e bombas para sugar o mate." (POMER, L. "Sobre a Formação dos Estados Nacionais na América Hispano-Índia". Caderno CEDEC nº 3. Brasiliense: São Paulo, 1979. p. 25.)

Do ponto de vista ideológico, grandes correntes de pensamento do século XIX, como o Liberalismo e o Positivismo, tiveram sua parcela de influência na Hispano-América. Entretanto, a ausência de uma burguesia estruturada como classe social dominante anulou as conquistas que a doutrina liberal desencadeara na Europa e nos Estados Unidos. As oligarquias agrárias intitulavam-se liberais apenas como forma de tomar o poder. Isso explica por que, muitas vezes, elementos liberais e federalistas - expressão de interesses regionais dominantes - as conquistar o poder político tornavam-se tão ou mais centralistas que os setores conservadores. A unificação política, que não fora alcançada com o tipo de capitalismo implantado de fora para dentro, só seria alcançada - e o foi por diversas vezes - com a força das armas. A coexistência estruturada entre setores capitalistas da economia e setores de economia rural tradicional (minifúndios e latifúndios improdutivos) implicou uma dicotomia ainda presente em muitas sociedades latino-americanas.

"Depois da Independência, a dominação pela Inglaterra capitalista não desenvolveu o modo capitalista de produção. Limitou-se a organizar - seguindo a linha colonial - produtos mercantis para exportação; persistiu na destruição de produções pré-coloniais e garantindo ou simplesmente criando setores regidos por modos de produção pré-capitalistas. Não obstante, o conjunto das sociedades hispano-índias foi integrado ao sistema capitalista mundial, está articulado e subordinado a seu modo de produção." (POMER, L. op. cit. p. 10.)

Sob a vigência dessas condições sócio-econômicas, abriu-se o caminho ao poder político pessoal dos líderes rurais conhecidos como caudilhos.

Podemos definir o caudilhismo como um regime autoritário, aparentemente acima das classes sociais, dominado por um líder rural (militar ou civil) e por uma burocracia que desfrutava de uma independência relativa, o que lhe permitia contar com a classe dominante. Seu objetivo era a conservação da ordem e da hierarquia social. Representava um estado de transição entre o poder metropolitano e o poder nacional, um precário equilíbrio de forças entre as classes sociais. Estas acumulavam forças até que uma delas assumia a hegemonia política.

Distinguimos dois tipos de caudilhismo: o progressista (liberal) e o conservador. O primeiro apoiava-se no movimento popular, ao qual fazia algumas concessões, garantindo o domínio das novas classes proprietárias sobre as oligarquias tradicionais e propiciando uma modernização econômica em proveito das elites e do capital estrangeiro. O de tipo conservador, apoiado nos setores tradicionais (Igreja, Exército) reprimia qualquer avanço social das massas, tendo como objetivo a manutenção das estruturas econômicas tradicionais. Na América, e em particular no México e na Argentina, alternaram-se essas formas de caudilhismo ao longo do século XIX.

Na ausência da dominação absoluta de uma classe social homogênea sobre toda a Nação, indivíduos ligados a interesses regionais ou locais ganhavam proeminência política e, contando com apoio popular e de forças militares - e muitas vezes com auxílio estrangeiro -, impunham o seu domínio sobre a sociedade. Em uma descrição algo romântica - bem de acordo com o pensamento dominantes durante a maior parte do século XIX -, podemos dizer que "o caudilho possuía o dom natural de escravizar a vontade de outros homens e de arrastá-los consigo - à rebelião, à batalha ou mesmo sobre um abismo. Ganhava a afeição de grandes massas e as convertia no seu povo. Detém a confiança desse povo; torna-se o símbolo do seu prestígio, encarna a personalidade da Nação [...] Agindo em nome do povo e afirmando reunir os interesses deste, justificava a sua ditadura". (DOZER, D. M. América Latina - Uma perspectiva histórica. Globo/EDUSP: Porto Alegre, 1966. p. 245)

Entretanto, a presença eventual das massas populares não modificava o caráter essencial do caudilhismo, que, na realidade, pouco tinha a ver com os interesses do povo. Este apoiava os líderes carismáticos, devido à falta de organizações populares autênticas; enfim, as massas despolitizadas apoiariam todo aquele que lhes acenasse com melhores condições de vida ou reforma agrária. Caudilhos ilustres foram os líderes da Independência, como Bolívar e Sucre; Santa Ana, o poder por trás do poder, no México; Benito Juárez e Porfírio Díaz, também no México; o argentino Rosas e o reformador José Artigas, no Uruguai.


O porfiriato, Juan O' Gorman

O caudilhismo opunha-se aos princípios liberais do século XIX, na medida em que era fortemente centralista e intervencionista, discriminava o povo das decisões políticas e pairava acima das instituições jurídicas e políticas. Não criou condições para que as massas populares se organizassem independentemente. O caudilhismo foi o instrumento político que serviu para perpetuação do domínio das oligarquias agrárias. Até quando?

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 200-202.

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