D. João VI de Portugal, Jean-Baptiste Debret
D. João VI passou à história vitimado pela própria aparência e por uma série de características caricaturais. Cabeça enorme, corpo roliço, pernas curtas, mãos e pés minúsculos, rosto avermelhado surgindo de um conflito de volteios e papadas, o rei não era apenas feio ("fealdade que se reputa das maiores ocorridas em pessoas de casa real de qualquer país da Europa", disse um cronista), como também um glutão inveterado que ignorava as mais primárias normas de higiene e asseio. É fato histórico que ele enfiava frangos assados inteiros nos bolsos de casacas engorduradas, sujas e puídas que se recusava a trocar. Também é verdade que odiava o contato com a água. "Não havia memória na Casa real, em Lisboa ou no Rio de Janeiro, de D. João ter tomado banho de corpo inteiro", escreveu, em 1927, o historiador Tobias Barreto.
Retrato de D. João VI. José Leandro de Carvalho
Não é de estranhar, portanto, que o rei tivesse erupções e doenças de pele constantes e coceiras permanentes. "Coçava-se por detrás e por diante, sendo que com essa mão dava assim mesmo a beijar", anotou um cortesão. Não bastasse, D. João VI ainda era traído publicamente pela mulher, D. Carlota Joaquina, e, dizia-se, mantinha um caso com seu camareiro.
Nascido em 13 de maio de 1767, D. João VI era o segundo filho de D. Pedro III e D. Maria I. Não fora criado para ser rei, nem o pretendia. Mas, em 1788, a varíola matou seu irmão mais velho, D. José, e D. João tornou-se o primeiro na linha sucessória. D. Pedro III (tio e marido de D. Maria I) morreu em 1786, de embolia cerebral. Em 1792, D. Maria enlouqueceu e D. João assumiu o governo, mas só aceitou o cargo de regente em 1799, quando sua mãe foi declarada incurável. No trono, revelou-se tímido, distante, fleumático, bucólico, calado e indeciso.
Cerimônia do beija-mão na corte de D. João VI. Artista e
militar inglês conhecido apenas pelas iniciais APDG
Detestado por muitos de seus biógrafos, atacado por vários de seus contemporâneos - não só estadistas brasileiros, mas políticos portugueses -, D. João VI surge, em muitos livros, como um monarca preguiçoso e bobalhão, vítima de um bucolismo inconsequente. Afinal, reunia-se regular e longamente com seus ministros e conselheiros, sopesava cuidadosamente todas as questões e, sempre que possível não tomava decisão alguma. Mas o que era visto como uma covardia talvez devesse ser interpretado como astúcia. Espremido entre um continente dominado pelo Exército francês e um oceano controlado pela marinha britânica, D. João adotou o estilo mais apropriado para Portugal numa época em que qualquer ação ousada poderia levar o reino à ruína. Tornou-se um radical de cautela.
De qualquer forma, o D. João imundo e glutão que chegou ao Brasil revelou-se um governante com frequentes rasgos de bondade e muitas ações práticas. Além de abrir os portos, declarar o Brasil um reino unido a Portugal e remodelar o Rio de Janeiro, ele permitiu a instalação de indústrias e aparelhou as Forças Armadas, criando a Academia da Marinha, a Academia Militar e uma fábrica de pólvora (assim como outras obras, essa foi paga pelos traficantes de escravos do Rio). Construiu o Jardim Botânico, um observatório astronômico e um museu mineralógico. Fez o teatro, a biblioteca pública e a tipografia real, cuja primeira publicação foi A riqueza das nações, de Adam Smith.
Retrato de D. João VI. Simplício Rodrigues de Sá
No Brasil, D. João não precisava ser pouco mais que um súdito da Inglaterra e só partiu porque era inevitável. Ao fazê-lo, disse ao filho Pedro: "Se o Brasil se separar, antes seja pra ti, que me terás de respeitar, do que para algum desses aventureiros". Mais do que um conselho, foi uma profecia.
BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 144-145.
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