"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O sexo das mulheres: a genitália (Parte 1)

O grande nu, Amedeo Modigliani


Como pano de fundo: a tela de Courbet, L'Origine du monde, hoje no Museu d'Orsay. Essa tela foi pintada para um colecionador de telas eróticas, Kalil Bey, ex-embaixador turco, que a guardava secretamente sob uma cortina, como um tesouro escandaloso; e escandalosa era ela, com efeito; nunca ninguém ousara representar a vulva entreaberta de uma mulher. O quadro, mais tarde, pertenceu ao psicanalista Jacques Lacan.


 A Origem do mundo, Gustave Courbet

O sexo é "a pequena diferença" anatômica que inscreve os recém-nascidos num ou noutro sexo, que faz com que sejam classificados como homem ou mulher. A indiferenciação é um drama. Michel Foucault publicou em 1978 as recordações de Herculine Barbin dite Alexia B., único título de uma coleção que ele havia lançado, intitulada "Les vies parallèles". Conta o drama de um hermafrodita, considerado mulher, que se sentia um homem, obteve o reconhecimento de que o era, mas acabou por se suicidar por causa da dificuldade em viver tal situação. A transexualidade é hoje reconhecida, sem que, no entanto, seja mais fácil conviver com ela.

Na maior parte das vezes, as pessoas se inscrevem na dualidade, no arranjo entre os sexos, para retomar a expressão de Erving Goffman, através do qual a sociedade organiza a diferença. Os trabalhos pioneiros vêm dos antropólogos: como Margaret Mead (1935), que inspirou Simone de Beauvoir, no Le Deuxième sexe (1949). "Não nascemos mulher. Tornamo-nos mulher": a fórmula famosa rompe com o naturalismo e convida à desconstrução das definições tradicionais. As relações do sexo (biológico) e do gênero (social, cultural) são o cerne da reflexão feminista contemporânea, que hesita a respeito desse recorte: o sexo é a determinação primeira? Ele não pertenceria ao gênero, num corpo cuja historicidade seria prioritária?

[...]

[...] De Aristóteles a Freud, o sexo feminino é visto como uma carência, um defeito, uma fraqueza da natureza. Para Aristóteles, a mulher é um homem mal-acabado, um ser incompleto, uma forma malcozida. Freud faz da "inveja do pênis" o núcleo obsedante da sexualidade feminina. A mulher é um ser em concavidade, esburacado, marcado para a possessão, para a passividade. Por sua anatomia. Mas também por sua biologia. Seus humores - a água, o sangue (o sangue impuro), o leite - não têm o mesmo poder criador que o esperma, elas são apenas nutrizes. Na geração, a mulher não é mais que um receptáculo, um vaso do qual se pode apenas esperar que seja calmo e quente. Só se descobrirá o mecanismo da ovulação no século XVIII e é somente em meados do século XIX que se reconhecerá sua importância. Inferior, a mulher o é, de início, por causa de seu seco, de sua genitália.

A importância atribuída ao sexo não é a mesma ao longo das épocas. Algumas a minimizam. Assim ocorre na Idade Média, quando se considera que os sexos são variedades de um mesmo gênero. O Renascimento [...] distingue o "alto" e o "baixo" do corpo, exalta o alto, nobre sede da beleza, e deprecia o "baixo", animal.

O século XVIII, das ciências naturais e médicas, descobre a parte de "baixo", como a do prazer e da vida. Ele "inventa" a sexualidade, com uma insaciável "vontade de saber" o sexo, fundamento da identidade e da história dos seres. Sexualiza os indivíduos, em especial as mulheres, como mostrou, seguindo a linha de Foucault, Thomas Laqueur. A mulher é identificada com o seu sexo, que a absorve e a impregna completamente. "Não há nenhuma paridade entre os dois sexos quanto à consequência do sexo, escreve Rousseau (Émile). O macho é macho apenas em certos momentos, a fêmea é mulher ao longo de sua vida ou, pelo menos, ao longo de toda a sua juventude; tudo a liga constantemente a seu sexo, e, para o bom cumprimento de suas funções, é-lhe necessário ter uma constituição que o propicie": cuidados, repouso, "vida suave e sedentária". Ela precisa da proteção da família, da sombra da casa, da paz do lar. A mulher se confunde com seu sexo e se reduz a ele, que marca sua função na família e seu lugar na sociedade.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 62-4.

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