"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Harém: a vida entre prazeres e intrigas (Parte 1)

Uma piscina no harém, Jean-Léon Gérôme 

No século XV, o palácio de Topkapi, construído no século precedente, foi ampliado. Seu harém pôde então abrigar até 1.500 mulheres. Uma cidade proibida, onde o amor e a política conviviam intimamente.

Na história do mundo, poucas instituições intrigaram tanto os ocidentais quanto os haréns dos sultões, que têm nos domínios do imperador otomano, em Istambul, o seu exemplo maior. Ele inspiraria as mais pródigas fantasias do mundo da cristandade, chegando ao carnaval do Brasil do século XXI. Gigantesco lupanar, sede incomparável de desvario sexual, o harém do grão-turco suscitava curiosidade, inveja ou repulsa, mas não deixava ninguém indiferente. Era possível imaginar belas ocidentais arrancadas de suas famílias para se tornarem as prisioneiras de um monarca libidinoso, submetidas a seus caprichos, joguetes de todas as suas fantasias, antes de serem lançadas no Bósforo quando não lhe agradavam mais.

Vinha também ao espírito o clichê dessas mulheres, condenadas a uma vida reclusa, ocupando seus dias ociosos a se enfeitar à espera de um simples olhar de seu senhor, ou a tecer intrigas destinadas a se vingar de uma rival. Os pintores ocidentais, frequentemente, nos mostraram as mulheres do harém despidas - como o fez Ingres com a sua Grande odalisca -, quando o clima de Istambul absolutamente não se harmoniza com uma nudez constante. Os escritores viajantes se dedicaram a descrever a vida cotidiana do harém, ainda que nenhum deles tivesse chegado algum dia a transpor os seus portões, enquanto outros pintavam o gineceu otomano como o teatro de sangrentas tragédias - ou, ao contrário, o jardim do Éden.


Harém, Théodore Chassériau

O harém era um local secreto. Muitos falaram dele, poucos o conheceram. Além disso, esse lugar misterioso era propício aos voos da imaginação. A palavra vem do árabe haram, que designa um lugar protegido por regras, proibido, sagrado. Em um sentido mais comum, o harém correspondia à parte secreta de uma casa, uma parte na qual mulheres, crianças e empregados domésticos viviam em isolamento completo: um espaço vedado aos homens.

Uma residência muçulmana compreendia os aposentos dos homens (o selamlik) e os das mulheres (o haremlik). Da mesma maneira, no palácio imperial, o harém era a parte mais secreta do enderûn, espaço interno da residência do sultão e seu domínio privado, em oposição ao birûn, espaço externo consagrado à vida na corte e ao Estado.

A vocação do harém imperial não se limitava a satisfazer os prazeres carnais do sultão, mesmo quando alguns entre eles - como Murad III (1546-1595), de quem se diz que "rendia homenagens" a duas ou três mulheres a cada noite - se mostravam insaciáveis em seu apetite sexual. Sua função essencial era assegurar a perenidade da dinastia, sua sobrevivência biológica, graças a uma abundante descendência masculina destinada a fazer contraponto à elevada mortalidade infantil e às frequentes mortes violentas. O grande número de parceiras femininas do sultão era a melhor garantia disso. Assim os "filhos de Osman", criador no século XIII da dinastia que foi chamada de otomana, reinaram ininterruptamente sobre o império até a supressão do sultanato por Mustafá Kemal, em 1922. Mais ainda, ao contrário das monarquias europeias, a Sublime Porta jamais conheceu uma guerra de sucessão.

A concentração de mulheres devotadas a gerar descendentes não deveria suscitar dificuldades políticas com suas famílias. Para eliminar esse risco, eram escolhidas esposas privadas de laços familiares. Toda ameaça de conspiração e até mesmo de levante ou de revolta, fomentada por parentes excessivamente ambiciosos, era desse modo descartada. Se os primeiros sultões desposaram princesas da Anatólia, bizantinas, búlgaras ou sérvias, seus sucessores, desde o fim do século XV preferiram as escravas. Mais ainda, para evitar com certeza os pretendentes externos, as filhas do sultão quase nunca se uniam a príncipes estrangeiros, e sim a notáveis e altos dignitários do império.

Onde encontrar, então, concubinas sem família destinadas ao palácio imperial? Nenhuma turca nem muçulmana de origem podiam ser mantidas nessa situação, pois o Islã proíbe reduzir uma fiel do Profeta à escravidão. Eram, portanto, mulheres cristãs que povoavam o harém - tomadas como presas de guerra, compradas nos mercados de escravos ou oferecidas ao sultão por dignitários zelosos.

Essas virgens eram geralmente originárias da Geórgia ou da Circássia, ambas no Cáucaso - região reputada pela beleza das mulheres -, o que não excluía as jovens de Veneza ou da Grécia, capturadas no Mediterrâneo. O sultão as preferia de carnes generosas, tez clara, com a pele leitosa, o rosto redondo, os cabelos louros ou de um negro aveludado e os olhos azuis.

Ser admitida no harém do grão-turco exigia ultrapassar uma série de obstáculos. A beleza era, sem dúvida, necessária, mas não suficiente. A futura concubina, que não devia esconder nenhuma imperfeição ou defeito físico, era minuciosamente examinada por um médico ou uma parteira. Depois dessa prova, ela era apresentada à mãe do sultão, que a acolhia. Ela recebia então um nome - de flor, de pássaro ou que lembrasse um traço de seu caráter -, era iniciada no Islã pela leitura e escrita do Corão, convertia-se e iniciava a aprendizagem da língua turca. Mas restava o essencial.

Jean-François Solnon. Harém, a vida entre prazeres e intrigas. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 123 / p. 46-48.

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