O primeiro instrumento
institucional de ocupação das terras americanas foi a feitoria. Através delas,
faziam-se contatos com índios da terra e se explorava pau-brasil. Cabia ao
feitor tentar impedir que se embarcassem, sem autorização, indígenas
escravizados, sobretudo mulheres, evitar a deserção de marinheiros, além de
receber produtos da terra que seriam enviados ao Reino. [...] Aos finais de
1520, acumulavam-se na mesa real pedidos de pessoas que queriam estabelecer-se
aqui. A promessa de “ganhar uma terra que não tem nenhum proveito e conquistá-la”
era muito utilizada. Outro argumento era o de que a instalação de algumas
povoações evitaria que os índios vendessem pau-brasil a estrangeiros.
Família de botocudos em marcha, Jean-Baptiste Debret.
[Uma cultura que foi vítima de uma guerra sem trégua]
O resultado da fórmula aplicada
com sucesso nas ilhas do norte da África, Madeira e Açores fez com que D. João
III optasse pela divisão das terras em capitanias. Uma vez demarcadas, com 50 léguas
de costa cada, foram distribuídas entre fidalgos. Como donatários, cabia-lhes
criar vilas e povoações, exercer justiça, nomear juízes e oficiais, incentivar
a instalação de engenhos, marinhas de sal e moendas de água, arrendar terras do
sertão. Uma série de vantagens e poderes funcionava como chamariz para os
colonos. Em contrapartida recebiam um “foral dos direitos, foros, tributos e
cousas que na dita terra hão de pagar”.
Uma família no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret
Povoar o Brasil fazia-se urgente,
contudo, por outras razões. A concorrência no Oriente obrigava Portugal a
repensar sua política colonial. O comércio com as Índias custara caro ao
tesouro real, mas fizera a fortuna de muitos comerciantes capazes de aplicá-la
em outros negócios que lhes parecessem rentáveis. A acintosa presença francesa
no Brasil obrigava a uma tomada de posição.
O sistema malogrou, contudo,
devido ao tamanho do território colonial, assim como em razão de ferozes
ataques indígenas. [...] quando se fundou o Governo Geral e Tomé de Souza foi
enviado para cá, apenas três, das 12 capitanias distribuídas, haviam
sobrevivido. Chegado em 1549, o primeiro governador-geral ergueu a primeira
vila com foros de cidade, São Salvador, e deu início a violento combate contra
os tupinambás, “matando e castigando parte deles”, para dar exemplo, como
registra um documento do período. Trouxe consigo os padres jesuítas e o plano
para a instalação urgente de uma estrutura político-administrativa que evitasse
o naufrágio completo da colonização: o Governo Geral. Na bagagem, Souza trazia
ainda um Regimento – instruções para pessoas e instituições – cujas preocupações
incidiam sobre questões militares e de povoamento: assentamento de colonos,
distribuição de gado bovino, criação de órgãos locais de administração, as câmaras.
Em 1588, outro Regimento foi aprovado. Nele, novas diretrizes apontavam para
uma maior presença do Estado português na Colônia: defesa da costa, exploração
de salitre para defesa da armada, prospecção de “minas de metais”, proteção
contra ataques e reafirmação da escravização de indígenas por “guerra justa”,
assim como instalação da Relação – ou seja, tribunal de instância superior, na
Bahia -, na verdade só instituída em 1609.
Índios em uma fazenda de Minas Gerais, Rugendas
Ao longo do tempo, governadores e
depois vice-reis trariam, cada qual, seus regimentos e instruções, ao sabor das
diversas conjunturas. Não houve consistência nas diretrizes administrativas até
meados do século XVIII. A fragilidade do sistema retardava a instalação de um
governo centralizados, tal como se desejava no Reino, comprometendo,
simultaneamente, os interesses fiscais, políticos e estratégicos da metrópole. Apesar
disso, começava a formação de quadros burocráticos; formação, contudo, marcada
pela precariedade. Num relatório datado de 1550, o corregedor Pero Borges faz
menção à proliferação de funcionários metropolitanos, muitos deles degredados
de “orelhas cortadas”, outros tantos “muito pobres e ignorantes”. O oitavo
governador do Brasil, D. Diogo Botelho, por exemplo, encontrou um tal
descalabro na figura de funcionários, que lesavam o fisco e exerciam tranqüilo contrabando,
que efetuou várias demissões na capitania de Pernambuco. A incompetência
judicial que, então, se instalava iria somar-se à distância física entre o
centro de decisões administrativas, Lisboa e as cidades litorâneas. E entre
essas e as vilas do interior. Mal se instalara, a máquina do governo começava a
emperrar. O braço da lei não atingia as áreas remotas. As próprias leis eram “profusas
e confusas”. Os magistrados, corruptos. A voracidade meirinhos, escrivães e juízes
prevaricadores era insaciável. A administração judiciária concentrava-se em
algumas cidades, deixando o resto da Colônia nas mãos da justiça privada e do
mandonismo local. [...]
A Fazenda, por sua vez, era
dominada pela necessidade de ampliar tributos, recursos e impostos para atender
as urgências crescentes do Estado. No mais, controlava casas para a alfândega e
nomeava funcionários necessários ao seu funcionamento nos portos. Composta por
guarnições de Primeira, Segunda e Terceira linhas, a organização militar reunia
tropas e regimentos de cavalaria, infantaria e artilharia. Foi, contudo, apenas
no século XVIII, quando os conflitos com os espanhóis ao sul da Colônia se
acentuaram, que tais “forças armadas” coloniais começaram a se
profissionalizar.
A organização eclesiástica também
se mostrou precária no século XVI. As razões? Havia dificuldade de recrutamento
de sacerdotes, e a autoridade episcopal não se instalara entre nós. Quando
criado na Bahia, em 1551, o primeiro bispado, a terra e os moradores eram tão
pobres que não podiam arcar com as despesas de manutenção do corpo eclesiástico.
Gastos com a instalação de colégios para a Companhia de Jesus faziam com que
sobrassem poucas rendas, pagas pela Coroa, para o clero secular. Foram inúmeros
os conflitos entre autoridades coloniais e bispos, entre membros do clero secular
e as ordens religiosas, e na própria hierarquia de ordens e do clero secular. Esse
se estruturou no bispado de Salvador, elevado à arquidiocese e sede da província
eclesiástica do Brasil em 1676 ao mesmo tempo em que eram criadas as dioceses
do Rio de Janeiro e Olinda (1676), e depois do Maranhão (1677), de Belém
(1719), São Paulo e Mariana (1745). O clero regular, representado por
diferentes ordens religiosas, era independente graças a doações vindas de
matrizes européias, esmolas da população local e aos rendimentos de
propriedades privadas. [...] O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição não se
instalou jamais entre nós, malgrado [...] as visitas de seus inquisidores à
Bahia, a Pernambuco e ao Pará, em busca de hereges, cristãos-novos,
feiticeiros, sodomitas e outros pecadores que infringiam a moral e a fé católica.
Vista
do Rio de Janeiro defronte a Igreja do Mosteiro de São Bento, Rugendas
Família de fazendeiros indo à igreja, Rugendas
[...] O familismo político
vicejava nas cidades litorâneas, unindo prósperos senhores de engenho e
funcionários metropolitanos. Ao longo do século XVII, os primeiros ocuparam
postos de comando nas Câmaras e suas ações arbitrárias caíam sob as costas dos
arrendatários, meeiros e lavradores, interferindo nos resultados dos
julgamentos e das ações que corriam no foro da Relação. Os casamentos dentro de
pequenos grupos de famílias permitiam que essas se revezassem em postos de
prestígio. Nesses grupos era constante a manipulação de alianças de família
para resolver, na esfera pública, problemas domésticos.
Tocador de berimbau, Jean-Baptiste Debret
Uma segunda camada de colonos,
constituída por plebeus, lavradores, “homens de qualidades” (como se lê em
algumas cartas de sesmarias), fixava-se silenciosamente com seus gados e
escravos na hinterlândia. Vagava pelos ermos sertões toda uma população
desajustada e apartada do trabalho regular. Era remediada, a princípio. Tais
indivíduos eram considerados pelas autoridades “facínorosos e bravos”. Muitos
viviam com suas famílias, isolados e solitários, nos roçados que cultivavam. Outros
podiam ser ladrões de gado ou “formigueiros”, nome que se dava aos que roubavam
bens de pouco valor. Não faltava quem se organizasse em bandos e quadrilhas,
agindo em assaltos pelas estradas.
Contudo, não somente a população
pobre proliferava. Por todo o sertão surgiram régulos abastados, que haviam
criado fortuna e zonas de poder local e pessoal. Tais potentados não hesitavam
em medir forças com autoridades e vizinhos. Confrontos sanguinários lavavam a
honra de famílias inteiras e seus agregados durante gerações. Os donos de tais
terras, apoiados em escravos e dependentes, sentiam-se impunes dentro de seus
domínios e mesmo de uma região. Tinham por aliados parentes e amigos voluntários.
Impensável contrariá-los. Só que o vizinho pensava da mesma maneira. Assim,
nunca carecia motivo para desavenças, “bastando”, como explicava o padre
Antonil em 1711, “um pau que se tire ou um boi que entre no canavial por
descuido para declarar o ódio escondido e para armar demandas e pendências
mortais”. Os dias de festa religiosa, momento em que a comunidade se juntava,
eram os preferidos para acertos de contas: tiroteios dentro das igrejas,
emboscadas durante a procissão, troca de punhaladas nas casas onde se vendia
bebida. [...] A impunidade grassava e contaminava populações de vilas e
vilarejos. [...] Poucas autoridades metropolitanas ousavam interferir nos “negócios
do sertão”. [...]
DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO,
Renato Pinto. O livro de ouro da História
do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 50-56.
NOTA: O
texto "Poder e poderes no Brasil Colônia" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.
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