"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A criação de gado no Brasil colonial

Rancho dos tropeiros, Charles Landseer

“Eu venho desde menino
desde muito pequenino
cumprindo o belo destino
que me deu Nosso Senhor:
eu nasci para ser vaqueiro
sou mais feliz brasileiro
eu não invejo dinheiro
nem diploma de doutor...”

“O dono quer ver
a terra plantada
diz de mim que vou
pela grande estrada:
deixem-no morrer
não lhe dêem água
que ele é preguiçoso
e não planta nada!”

Aí estão alguns versos da música Sina, dos cearenses Raimundo Fagner e Ricardo Bezerra, e de Plantador, do paraibano Geraldo Vandré. Percebemos que a situação do vaqueiro é retratada de uma forma totalmente diferente da do lavrador. Haveria uma explicação histórica para a felicidade do vaqueiro, tão contrastante com a vida do plantador?

Sabemos que a ocupação econômica do Brasil foi feita, principalmente, à base da agro-manufatura do açúcar. A força de trabalho que ampliava os canaviais e movimentava os engenhos era a do negro escravo. Trabalho pesado, obrigatório, sofrido e muito lucrativo para os donos das terras. Trabalho tão explorado que fez muito plantador sair pela “grande estrada”, em busca de coisa melhor.

Nas fazendas de açúcar havia criação de gado, necessário para a alimentação da população local e como força motriz. Com o tempo, esse “gado de quintal” foi considerado antieconômico: ele exigia pastos, tomando terras que poderiam ser muito mais rendosas se cobertas de canaviais. Os rebanhos cresciam, os lucros com a exportação do açúcar também.

[...]

Resistindo ao clima semi-árido, procurando os barreiros de sal, o gado desbravava o agreste e o sertão do Nordeste. Abria caminhos, que se tornaram importantes meios de comunicação na época, como os “Sertões de Fora”, que ligavam a região próxima a Salvador com as imediações de Fortaleza, sem se afastar demais do litoral.

A criação de gado nessa área está muito ligada ao extrativismo salineiro, desenvolvido principalmente no litoral do atual Rio Grande do Norte. O gado fez a prosperidade de Aracati, no litoral do Ceará, com a exportação, no século XVIII, da “carne-do-ceará”. Por sinal, foi um tropeiro cearense, José Pinto, que difundiu no extremo sul as técnicas de charquear a carne, no sal ou no sol.

As fazendas do interior da Bahia articulavam-se com a região maranhense próxima a São Luís, através dos “Sertões de Dentro”, cujos caminhos acompanhavam o curso do “rio dos Currais” – o São Francisco -, e, também, o Canindé, o Parnaíba e o Itapicuru.

Junto com o gado, o dono do gado. Surgiram as feiras. Elas e as muitas fazendas, também chamadas no Nordeste de “currais”, acabaram por dar origem a vários núcleos de povoamento, como Feira de Santana, na Bahia, Pastor Bons, no Maranhão, e Oeiras, antiga vila da Mocha, no Pará.

Como no litoral, certos homens poderosos, requerendo sesmarias ao rei, iam formando enormes propriedades sertanejas, de léguas e léguas [...]. Guimarães Rosa [...] ao percorrer as veredas do grande sertão, conta que “cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros”.

Onde estaria a felicidade do vaqueiro, cantada por Fagner? Talvez no fato de ele se sentir mais livre que o “cabra do eito” – o trabalhador dos canaviais do litoral. Talvez no fato de ele quase nunca ser escravizado e nem sempre estar sob a vigilância do proprietário. Além disso, “depois de quatro ou cinco anos de serviço começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazenda por sua conta”.

Tropa de mulas, Jean-Baptiste Debret

Uma fazenda não exigia mais que dez ou doze “fábricas” (vaqueiros). Sempre um se destacava, principalmente quando o proprietário não morava na fazenda. Este “chefe”, além de participar do produto, podia receber um pequeno lote de terra para produzir gêneros necessários à sobrevivência e um salário fixo anual.

Conduzindo os rebanhos, a vida do vaqueiro tinha características de seminomadismo. Claro está que para os descendentes dos indígenas essas tarefas estavam mais próximas do seu mundo: muitos deles eram boiadeiros.

No século XVIII, com a descoberta de ouro no centro da colônia, o gado vacum do Nordeste desce pelo curso dos rios São Francisco, Araguaia e Tocantins para a área do novo extrativismo. O gado ia realizando a integração de diferentes regiões econômicas por ser a única atividade do período voltada para o mercado interno.

A pecuária também reduziu as disputas dentro da própria classe dominante: os proprietários que não conseguiam manter os engenhos tornaram-se fazendeiros de gado.

Nesse processo pecuarista de colonização do sertão ocorrem novos choques com os nativos. Os derrotados são, mais uma vez, os donos naturais daquelas terras. Interiorizaram-se ainda mais, foram escravizados, refugiaram-se nas missões ou tornaram-se capangas dos novos poderosos da região. Em suma, poucos restaram como índios.

Tropeiros negociando um cavalo, Nicolas-Antoine Taunay 

A vida dos primeiros sertanejos era dura: fartura só de carne e leite. A matéria-prima principal para quase todos os utensílios era o couro: nas portas das cabanas, nos leitos, nas mochilas, nas cordas, nas roupas, nos carros de boi que puxavam material de aterro para os açudes, nos recipientes para carregar água, guardar comida ou pisar rapé.

[...]

No Sul, no planalto Meridional, os bandeirantes que arranhavam o litoral logo se estabeleceram, apresando o gado cimarrón – que se reproduzia naturalmente – depois de destruídas as missões dos jesuítas espanhóis. Descendo de São Vicente a Laguna, formam estâncias – sempre maiores que as três léguas de sesmarias estabelecidos por lei... – nos campos de Paranapanema, Curitiba, Guarapuava, Lajes, Viamão e Vacaria.

Descanso de tropeiros, Johann Moritz Rugendas

A mineração atrai as tropas de muares vindas do sul, que serão vendidas em Sorocaba, feira importante localizada no interior do atual Estado de São Paulo, de lá seguindo até as Gerais. Com a introdução do charque, segue também a carne desde Pelotas.

Na pecuária sulina os peões tinham uma vida difícil. Oprimidos por rígidos capatazes – como bem retrata a lenda do Negrinho do Pastoreio – esses índios de origem charrua ou minuana, mestiços ou escravos negros que tinham que estar sempre prontos para lutar pela conquista de novas terras – as “califórnias” – ou contra os ataques de espanhóis, contrabandistas e índios submetidos. Trabalho e guerra eram a tônica das vidas dos primeiros cavaleiros gaúchos.

Também no extremo norte a atividade criatória se desenvolveu, dirigida por jesuítas e mercedários. O gado da ilha de Marajó (o búfalo só foi introduzido em 1870, trocado por bovinos de corte com as Guianas) abastecia a população de Belém e o criado em Roraima sustentava o povoamento fronteiriço, sob constante ameaça de incursões holandesas. No século XVIII, com a expulsão da Companhia de Jesus e a extinção da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, essas fazendas passaram para o controle do Estado, que as vendeu a particulares.

Atividade constante, voltada para o mercado interno, com enorme irradiação espacial, unindo diferentes áreas geo-econômicas e quase não utilizando o trabalhador escravo, a pecuária diferiu muito de outras atividades do período colonial.


ALENCAR, Francisco [et all]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 53-56.

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