Rancho dos tropeiros, Charles Landseer
“Eu venho desde
menino
desde muito pequenino
cumprindo o belo
destino
que me deu Nosso
Senhor:
eu nasci para ser
vaqueiro
sou mais feliz
brasileiro
eu não invejo
dinheiro
nem diploma de
doutor...”
“O dono quer ver
a terra plantada
diz de mim que vou
pela grande estrada:
deixem-no morrer
não lhe dêem água
que ele é preguiçoso
e não planta nada!”
Aí estão alguns versos da música Sina, dos cearenses Raimundo Fagner e
Ricardo Bezerra, e de Plantador, do
paraibano Geraldo Vandré. Percebemos que a situação do vaqueiro é retratada de
uma forma totalmente diferente da do lavrador. Haveria uma explicação histórica
para a felicidade do vaqueiro, tão contrastante com a vida do plantador?
Sabemos que a ocupação econômica
do Brasil foi feita, principalmente, à base da agro-manufatura do açúcar. A
força de trabalho que ampliava os canaviais e movimentava os engenhos era a do
negro escravo. Trabalho pesado, obrigatório, sofrido e muito lucrativo para os
donos das terras. Trabalho tão explorado que fez muito plantador sair pela “grande
estrada”, em busca de coisa melhor.
Nas fazendas de açúcar havia
criação de gado, necessário para a alimentação da população local e como força
motriz. Com o tempo, esse “gado de quintal” foi considerado antieconômico: ele
exigia pastos, tomando terras que poderiam ser muito mais rendosas se cobertas
de canaviais. Os rebanhos cresciam, os lucros com a exportação do açúcar também.
[...]
Resistindo ao clima semi-árido,
procurando os barreiros de sal, o gado desbravava o agreste e o sertão do
Nordeste. Abria caminhos, que se tornaram importantes meios de comunicação na época,
como os “Sertões de Fora”, que ligavam a região próxima a Salvador com as
imediações de Fortaleza, sem se afastar demais do litoral.
A criação de gado nessa área está
muito ligada ao extrativismo salineiro,
desenvolvido principalmente no litoral do atual Rio Grande do Norte. O gado fez
a prosperidade de Aracati, no litoral do Ceará, com a exportação, no século
XVIII, da “carne-do-ceará”. Por sinal, foi um tropeiro cearense, José Pinto,
que difundiu no extremo sul as técnicas de charquear a carne, no sal ou no sol.
As fazendas do interior da Bahia
articulavam-se com a região maranhense próxima a São Luís, através dos “Sertões
de Dentro”, cujos caminhos acompanhavam o curso do “rio dos Currais” – o São
Francisco -, e, também, o Canindé, o Parnaíba e o Itapicuru.
Junto com o gado, o dono do gado.
Surgiram as feiras. Elas e as muitas fazendas, também chamadas no Nordeste de “currais”,
acabaram por dar origem a vários núcleos de povoamento, como Feira de Santana,
na Bahia, Pastor Bons, no Maranhão, e Oeiras, antiga vila da Mocha, no Pará.
Como no litoral, certos homens
poderosos, requerendo sesmarias ao rei, iam formando enormes propriedades
sertanejas, de léguas e léguas [...]. Guimarães Rosa [...] ao percorrer as
veredas do grande sertão, conta que “cada lugar é só de um grande senhor, com
sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros”.
Onde estaria a felicidade do
vaqueiro, cantada por Fagner? Talvez no fato de ele se sentir mais livre que o “cabra
do eito” – o trabalhador dos canaviais do litoral. Talvez no fato de ele quase
nunca ser escravizado e nem sempre estar sob a vigilância do proprietário. Além
disso, “depois de quatro ou cinco anos de serviço começava o vaqueiro a ser
pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazenda por sua conta”.
Tropa de mulas, Jean-Baptiste Debret
Uma fazenda não exigia mais que
dez ou doze “fábricas” (vaqueiros). Sempre um se destacava, principalmente
quando o proprietário não morava na fazenda. Este “chefe”, além de participar
do produto, podia receber um pequeno lote de terra para produzir gêneros necessários
à sobrevivência e um salário fixo anual.
Conduzindo os rebanhos, a vida do
vaqueiro tinha características de seminomadismo. Claro está que para os
descendentes dos indígenas essas tarefas estavam mais próximas do seu mundo:
muitos deles eram boiadeiros.
No século XVIII, com a descoberta
de ouro no centro da colônia, o gado vacum do Nordeste desce pelo curso dos
rios São Francisco, Araguaia e Tocantins para a área do novo extrativismo. O
gado ia realizando a integração de diferentes regiões econômicas por ser a única
atividade do período voltada para o mercado
interno.
A pecuária também reduziu as
disputas dentro da própria classe dominante: os proprietários que não
conseguiam manter os engenhos tornaram-se fazendeiros de gado.
Nesse processo pecuarista de
colonização do sertão ocorrem novos choques com os nativos. Os derrotados são,
mais uma vez, os donos naturais daquelas terras. Interiorizaram-se ainda mais,
foram escravizados, refugiaram-se nas missões ou tornaram-se capangas dos novos
poderosos da região. Em suma, poucos restaram como índios.
Tropeiros negociando um cavalo, Nicolas-Antoine
Taunay
A vida dos primeiros sertanejos
era dura: fartura só de carne e leite. A matéria-prima principal para quase
todos os utensílios era o couro: nas portas das cabanas, nos leitos, nas
mochilas, nas cordas, nas roupas, nos carros de boi que puxavam material de
aterro para os açudes, nos recipientes para carregar água, guardar comida ou
pisar rapé.
[...]
No Sul, no planalto Meridional,
os bandeirantes que arranhavam o litoral logo se estabeleceram, apresando o
gado cimarrón – que se reproduzia
naturalmente – depois de destruídas as missões dos jesuítas espanhóis. Descendo
de São Vicente a Laguna, formam estâncias – sempre maiores que as três léguas
de sesmarias estabelecidos por lei... – nos campos de Paranapanema, Curitiba,
Guarapuava, Lajes, Viamão e Vacaria.
Descanso de tropeiros, Johann Moritz Rugendas
A mineração atrai as tropas de
muares vindas do sul, que serão vendidas em Sorocaba, feira importante
localizada no interior do atual Estado de São Paulo, de lá seguindo até as
Gerais. Com a introdução do charque, segue também a carne desde Pelotas.
Na pecuária sulina os peões
tinham uma vida difícil. Oprimidos por rígidos capatazes – como bem retrata a
lenda do Negrinho do Pastoreio – esses índios de origem charrua ou minuana,
mestiços ou escravos negros que tinham que estar sempre prontos para lutar pela
conquista de novas terras – as “califórnias” – ou contra os ataques de espanhóis,
contrabandistas e índios submetidos. Trabalho e guerra eram a tônica das vidas
dos primeiros cavaleiros gaúchos.
Também no extremo norte a
atividade criatória se desenvolveu, dirigida por jesuítas e mercedários. O gado
da ilha de Marajó (o búfalo só foi introduzido em 1870, trocado por bovinos de
corte com as Guianas) abastecia a população de Belém e o criado em Roraima
sustentava o povoamento fronteiriço, sob constante ameaça de incursões
holandesas. No século XVIII, com a expulsão da Companhia de Jesus e a extinção
da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, essas fazendas passaram para o controle
do Estado, que as vendeu a particulares.
Atividade constante, voltada para
o mercado interno, com enorme irradiação espacial, unindo diferentes áreas
geo-econômicas e quase não utilizando o trabalhador escravo, a pecuária diferiu
muito de outras atividades do período colonial.
ALENCAR, Francisco [et all]. História da sociedade brasileira. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 53-56.
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