"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A sociedade feudal: "Alguns rezam, outros combatem e outros trabalham..."

Clero, nobreza e "povo". Essa iluminura medieval ilustra a ideologia das três ordens sociais.

"A sociedade dos fiéis forma um só corpo, mas o Estado tem três corpos: com efeito os nobres e os servos não se regem pelo mesmo estatuto [...] Uns são guerreiros, protetores das igrejas; são os defensores do povo, tanto dos grandes como dos pequenos, de todos, enfim, e ao mesmo tempo garantem também a sua própria segurança. A outra classe é a dos servos: esta desgraçada raça nada possui senão à custa de sofrimento. Quem, de ábaco na mão, poderia contar os cuidados que absorvem os servos, as suas longas caminhadas, os seus duros trabalhos? Dinheiro, vestuário, alimento, tudo os servos fornecem a toda a gente; nem um só homem livre poderia subsistir sem os servos. Há algum trabalho a realizar? Alguém pretende meter-se em despesas? Vemos os reis e os prelados fazer-se de servos dos seus servos; o senhor é alimentado pelo servo, ele, que pretende alimentá-lo. E o servo não vê fim para as suas lágrimas e suspiros. A casa de Deus, que cremos ser uma, está, pois, dividida em três: uns oram, outros combatem e os outros, enfim, trabalham. Essas três partes que coexistem não sofrem com a sua disjunção; os serviços prestados por uma são a condição da obra das outras duas; e cada uma, por sua vez, se encarrega de aliviar o todo. De modo que essa tripla associação nem por isso é menos unida, e é assim que a lei tem podido triunfar e que o mundo tem podido gozar de paz". Adalberón de Laon (c. 1020). In: LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983.)

1. Estrutura política do feudalismo. O feudalismo foi consequência de uma situação econômica difícil, provocada por ondas de invasores (normandos, eslavos, árabes) e por guerras contínuas entre os vários reinos germânicos.


Os habitantes das cidades procuraram refúgio nos campos, passando a depender dos produtos da terra. Em consequência do abandono das cidades e da vida simples e rústica que passou a predominar, os ofícios e o artesanato decaíram, o comércio foi-se estagnando e parou quase por completo em face também da insegurança das estradas. Apenas cidades da orla mediterrânea, particularmente algumas cidades italianas (Veneza e Amalfi), permaneceram como núcleos urbanos e centro de comércio com o Oriente.

Nas regiões afastadas do litoral, a terra representava a única riqueza existente. Assim, quem possuía terras detinha o poder. Os grandes proprietários tornaram-se cada vez mais poderosos, à medida que os pequenos proprietários, em troca de proteção, lhes foram entregando suas terras. Os próprios reis, apesar de representarem a autoridade máxima, precisavam da ajuda financeira e militar dos ricos e poderosos, fossem eles leigos (condes e marqueses) ou religiosos (bispos e abades). Para garantir essa ajuda, os reis confiaram vastas glebas de suas terras, em benefício, aos proprietários mais influentes. Essas terras chamaram-se feudos (de uma palavra germânica significando gado, propriedade agrária). Mediante cerimônia solene, a investidura, o senhor de um feudo tornava-se vassalo do rei, prestando-lhe juramento de fidelidade, comprometendo-se a fornececer-lhe ajuda financeira e tropas armadas, auxílio que o soberano retribuía assegurando ao feudatário igual fidelidade, defesa de sua honra, e justiça.

Os vassalos do rei começaram, pouco a pouco, a distribuir parte de suas terras e senhores menos influentes que, por sua vez, distribuíram terras a outros proprietários ainda menos influentes, criando assim uma corrente de vassalos, uns subordinados a outros, em uma ordem hierárquica semelhante a uma pirâmide, em cujo vértice estava o rei.

Esta estrutura hierárquica, no entanto, ao invés de fortalecer os poderes do rei, enfraqueceu-os, pois cada vassalo acabou por exercer em seu feudo direitos que cabiam ao rei, como administração da justiça, cobrança de impostos, apelo às armas. O poder que assim se concentrou nas mãos dos feudatários fez com que muitos vassalos se tornassem, às vezes, mais poderosos do que o próprio rei. O território do rei parcelou-se em um grande número de propriedades, maiores ou menores, que escaparam totalmente ao controle do soberano.

2. A sociedade feudal. Estruturou-se rigidamente em classes distintas. A classe mais poderosa era formada pelos nobres, em ordem hierárquica, dos simples cavaleiros aos condes, marqueses e duques (antigos chefes militares, do latim dux= chefe).

Aos nobres cabia a responsabilidade da guerra, providenciar às próprias custas recursos bélicos (armas, armaduras, máquinas de assalto), o abastecimento das tropas e também cavalos, pois a cavalaria era de suma importância nas batalhas, sobretudo quando a Europa teve de enfrentar o ataque dos exímios cavaleiros árabes.

Gozavam de igual influência os ricos dignitários da Igreja (bispos e abades) aos quais cabia dirigir o culto e as práticas religiosas.

Formavam a classe inferior alguns poucos artesãos e a grande massa de camponeses, os servos da gleba, homens quase escravos, presos às terras dos senhores feudais: passavam de um proprietário a outro quando as terras mudavam de dono.


"Os clérigos devem por todos orar
Os cavaleiros sem demora
Devem defender e honrar
E os camponeses sofrer.
Cavaleiros e clero sem falha
Vivem de quem trabalha.
(Os camponeses) têm grande canseira e dor.
Pagam primícias (primeiras colheitas), corveias, orações ou a talha (parte da produção entregue ao senhor)
E cem coisas costumeiras.
E quanto mais pobre viver
Mais mérito terá (mérito que o resgata).
Das faltas que cometeu.
Se paga a todos o que deve,
Se cumpre com lealdade a sua fé,
Se suporta paciente o que lhe cabe:
Angústia e sofrimento."
(Estevão de Fougères, clérigo francês do século XII. In: DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário no feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. p. 309.)

Existiam ainda pequenos proprietários, homens livres, isto é, não vinculados a um feudo; mas estes eram pouquíssimos e praticamente nenhuma influência tiveram na sociedade feudal.

3. A economia feudal. Toda propriedade feudal bastava-se a si mesma, constituindo uma comunidade independente, autônoma do ponto de vista econômico.

Um feudo - que por vezes compreendia alguns vilarejos - era formado pelos domínios do senhor e por uma parcela agregada. O feudatário reservava exclusivamente para si a maioria das florestas, devido ao grande valor da lenha, e terras de melhor qualidade por ele destinadas a culturas mais rendosas, como a da vinha.

A parcela agregada, em que viviam os camponeses, fornecia os meios indispensáveis à subsistência do feudo. A produção tocava aos camponeses que, em troca, pagavam ao senhor tributos para utilizar o moinho e o forno de pão de propriedade exclusiva do feudatário, ou em espécie (cereais, ovos, galinhas, porcos, lã, tecidos de linho, utensílios, ferramentas). Além disso, eram obrigados a prestar três ou quatro dias por semana de serviços gratuitos ao feudatário para conservar em ordem construções, pontes, caminhos, margens de cursos de água, para trabalhar na colheita de frutas e abater árvores das florestas senhoriais.


Os doze trabalhos dos meses, Pietro di Crescenzi. Século XV.


O feudo, portanto, produzia praticamente todo o necessário, vindo de fora o sal, para conservação de carnes, e o ferro, para fabricação de armas, ferramentas e utensílios. A economia dessa época era uma economia mais ou menos fechada; concentrava-se no feudo e gravitava em torno da residência do feudatário, verdadeira fortaleza erguida no topo de elevações, protegida por fortes muralhas, o castelo.

Em consequência dessa economia quase fechada, estagnaram-se os intercâmbios comerciais na Europa e também como o Oriente, de onde provinham metais preciosos (ouro e prata), utilizados na cunhagem da moeda, que acabou desaparecendo da circulação. HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 130, 132-134.


4. As características militares do feudalismo. O cavaleiro foi a figura característica da organização militar do feudalismo. Ser cavaleiro, com escudos, lanças, espadas, cota de malha e armadura, era privilégio da aristocracia, pois o acesso à cavalaria dependia da origem e da riqueza. Essa característica estava ligada à separação entre guerreiros e chefe que se dera na tribo germânica e também ao custo do equipamento completo de um cavaleiro, que era muito alto para os mais pobres. Era preciso ter muitas terras e servos trabalhando para sustentar um cavaleiro. Ou seja, somente a aristocracia feudal era capaz disso.


Uma das principais funções militares da cavalaria era garantir e ampliar os domínios dos senhores e reprimir rebeliões camponesas que ameaçassem o poder da aristocracia. Mas a militarização servia também para defender a cristandade contra seus inimigos, por exemplo, os muçulmanos, ao mesmo tempo que garantia a conquista de mais terras.


Os constantes combates acabavam destruindo as plantações e os campos. No século X, a Igreja interveio, propondo a Trégua de Deus, que determinava que não se poderia guerrear entre a quinta-feira e a segunda-feira pela manhã.


5. A Igreja medieval ocidental. A Igreja sobreviveu às crises e mudanças do final da Antiguidade e da Alta Idade Média. O clero monopolizava o saber em um mundo de analfabetos e foi responsável por conservar a cultura letrada da Antiguidade Clássica. Apesar de manter essa cultura atrelada a seus interesses de grande senhora de terras, a Igreja muito contribuiu para que o conhecimento não estagnasse.


A Igreja romana acumulou poderes que derivavam de sua riqueza material e da influência espiritual que exercia sobre as pessoas.


[...]


As doações de terras feitas pelos reis e senhores laicos à Igreja faziam com que seu poder político aumentasse, pois ia se transformando num "grande senhor feudal". Essa posição fazia com que a Igreja tivesse que lutar pela defesa de seus interesses tanto quanto os demais senhores feudais.


Mas o mais importante é que a Igreja católica exercia uma poderosa influência na sociedade. O controle que o clero detinha sobre a cultura reproduzia uma visão de mundo da Igreja; os padres, em seus sermões, passavam essa visão de um mundo dividido em classes, naturalmente desiguais. PEDRO, Antonio et all. História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 98.


"A influência da Igreja não se limitou a regulamentar os bens e a vida das comunidades eclesiásticas: sua jurisdição também incidiu sobre os demais componentes da sociedade, os quais se subordinaram aos preceitos canônicos relativos à organização da família, graças à regulamentação do casamento, envolvendo dotes, heranças, direitos e deveres dos cônjuges e anulação do matrimônio devido a incesto, bigamia etc. Eram as paróquias que registravam os atos de batismo, casamento e falecimento, enquanto os tribunais eclesiásticos julgavam questões concernentes a testamentos, casamentos etc. Igualmente importante foi a sua ação na defesa dos fracos e oprimidos, através da moderação da rudeza dos costumes feudais, da concessão do direito de asilo e de ativa assistência social: por sua riqueza, pôde fundar e manter orfanatos, hospitais, leprosários e asilos; por seu poder, impôs o Asilo de Deus, que colocava sob proteção os que se encontrassem em domínios da Igreja [...]". AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 512.


AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008.
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário no feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982.
HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980.
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983.
PEDRO, Antonio et all. História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005.

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