"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O olhar do viajante: o Rio de Janeiro visto por Debret

Cena de carnaval, Debret. Aqui o artista mostra algumas brincadeiras do carnaval do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX: atirar limões de cheiro (esferas de cera com água perfumada), sujar de polvilho o rosto das pessoas, atirar água com seringas de lata.

[História e cidade] Descrever uma cidade é principalmente falar do cotidiano das pessoas que vivem nela. Foi o que fez Jean-Baptiste Debret, pintor francês, que deixou um testemunho impressionante sobre a cidade do Rio de Janeiro. Debret foi nomeado professor da Academia Real de Ciências, Artes e Ofícios por D. João, quando da permanência da família real portuguesa no Brasil.

A vinda da família real foi um marco importante nas transformações ocorridas na vida cotidiana da cidade, significando um importante fato político, cultural e social. As medidas tomadas por D. João mostraram o esforço da monarquia portuguesa em modernizar o Rio de Janeiro e, por extensão, o Brasil. Ele quis dotar a cidade de condições que a tornassem digna da grandeza de ser capital de uma monarquia europeia.

Durante quinze anos, Debret pintou e descreveu o que viu e sentiu. O resultado do seu trabalho foi uma obra publicada em três volumes, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, com aquarelas e textos, nos quais retrata e descreve paisagens, tipos humanos e costumes brasileiros. Trata-se, portanto, de uma obra de caráter documental. 

Café torrado, Debret

Ao pintar, descrever e comentar o que viu, o autor pensou no público francês, ao qual quis mostrar o exótico e o diferente, mas pensou também em quem o contratou para vir ao Brasil: a corte portuguesa. Mas, ao procurar captar o diferente e o exótico, Debret captou os traços da mestiçagem cultural, que combinou elementos da civilização europeia com a prática escravista colonial. Para ele o Brasil era a parte mais avançada do Novo Mundo, mas esse avanço estava na organização política, na monarquia, não nas práticas sociais e nos hábitos dos brasileiros. Estes seriam grosseiros e indolentes, condicionados pela presença ostensiva da escravidão em toda a vida cotidiana.

Debret colocou em imagens essa contradição, que estava presente no momento histórico da instalação da corte portuguesa no Brasil e que deixou sua marca na história posterior do Brasil independente. PEDRO, Antonio et alli. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 273-274.

Calceteiros, Debret

[Uma cidade mestiça] De noite, eles [os afro-brasileiros] vão jogar no mar as tinas de excrementos e o lixo (a cidade ainda não possui latas de lixo nem fossas sépticas). Depois, para esquecerem os trabalhos duros e sacrificarem-se ao rito do banzo (essa saudade típica dos filhos da África), saem, de tambor na mão, a fim de fornicar nos cantos e dançar nas praças públicas.

Mijão, Debret

Evidentemente, a plebe são eles: os ancestrais distantes e predestinados do lumpemproletariado de hoje. Todavia, entre eles já havia inúmeros alforriados. Alguns viraram calceteiros ou artesãos, talvez até cocheiros ou escreventes de comerciantes, caso dos meritórios. E, além disso, aprenderam a se juntar para defender seus direitos. Têm suas igrejas e suas próprias confrarias. Não esqueçamos que a igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos foi construída pelos negros, e a de Nossa Senhora da Conceição da Boa Morte, pelos mulatos! As mulheres não ficam atrás nesse tímido renascimento. Algumas tornam-se gerentes das vendas (essas curiosas tabernas da época, aonde a fina flor da cidade ia bebericar um café e se informar sobre os acontecimentos do dia).

[...]

Loja de barbeiros, Debret

De qualquer maneira, o Rio não tem apenas desterrados e enjeitados. Tem também suas baronesas e seus altos funcionários, seus príncipes de sangue e seus novos-ricos. A chegada inesperada da Corte portuguesa acarretou mudanças até no cerne do mundo branco, doravante subdividido em duas novas raças, que desconfiam uma da outra: a gente do rei e a gente da terra. A gente do rei ocupa os palacetes e supervisiona o comércio e a administração. Essa alta sociedade vive à europeia, considerando com desprezo a rusticidade e a indolência tropical dos brasileiros de origem europeia e dos mulatos. Organizam grandes bailes em que convidam infantes e duquesas a bailar danças de nomes exóticos: a chamada dança dos mouros, uma outra conhecida como dança dos macacos e a que se chamava a dança da China. Por ocasião dos noivados e casamentos, organizavam grandiosas festividades militares, com corridas de cavalos e de trenós, carrosséis e desfiles de cavaleiros em uniformes emperiquitados (Debret, aliás, representou-se numa aquarela magnífica). Têm suas festas privadas e suas regatas (e estas, nas palavras de Machado de Assis, nada ficavam a dever às de Epsom). Debret descobrirá que o primeiro teatro da cidade (o São João) já abriu suas portas, e lá dentro, com toda certeza, não se sente longe de casa: encenava-se essencialmente o repertório francês (em especial Marivaux e Beaumarchais), e na língua de Molière, façam-me o favor! Por sinal, nesse início de século a língua francesa é onipresente no Rio de Janeiro. É de bom-tom falar francês nos jantares de gala, mesmo quem só tem vagas noções de língua, e mandar os filhos estudar em Paris. As pessoas apaixonam-se pelas novas ideias. Leêm Spencer e Auguste Comte: "Ordem e Progresso"! Como entre seus primos europeus, aqui também o "positivismo" está na crista da onda... MONÉMEMBO, Tierno. "O festim brasileiro". In: STRAUMANN, Patrick (org.). Rio de Janeiro, cidade mestiça - Nascimento da imagem de uma nação: Ilustração e comentários de Jean-Baptiste Debret. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 123-130.

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