"Nossos ancestrais europeus foram negros durante dezenas de milhares de anos. Essa hipótese foi formulada 30 anos atrás por um dos maiores geneticistas do século XX, Luca Cavalli-Sforza, depois de conduzir estudos genéticos em centenas de grupos étnicos ao redor do mundo.
Para enunciá-la, Cavalli- Sforza partiu de evidências genéticas e paleontológicas sugestivas de que nossos ancestrais devem ter chegado ao Norte da Europa há cerca de 40 mil anos, depois de passar 5 milhões de anos no berço africano.
Esses primeiros imigrantes eram nômades, caçadores, coletores, pescadores e pastores que se alimentavam predominantemente de carne. Dessa fonte, os primeiros europeus absorviam a vitamina D, imprescindível para a absorção de cálcio no intestino e a boa formação dos ossos.
Nos últimos 6 mil anos, quando a agricultura se disseminou pelo continente, fixou o homem à terra e criou a possibilidade de estocar alimentos, a dieta europeia sofreu mudanças radicais. A adoção de uma dieta mais vegetariana trouxe vantagens nutricionais, menor dependência da imprevisibilidade da caça e da pesca, aumentou a probabilidade de sobrevivência da prole, mas reduziu o acesso às fontes naturais de vitamina D.
Para garantir que o metabolismo de cálcio continuasse a suprir as exigências do esqueleto, surgiu a necessidade de produzir vitamina D por meio de um mecanismo alternativo: a síntese na pele mediada pela absorção das radiações ultravioletas da luz solar.
De um lado, a pele negra, incapaz de absorver os raios ultravioletas na intensidade que o faz a pele branca; de outro, as baixas temperaturas características do Norte da Europa, que obrigaram os recém-saídos da África tropical a usar roupas que deixavam expostas apenas as mãos e o rosto, criaram forças seletivas para privilegiar mulheres e homens de pele mais clara. Num mundo de gente agasalhada dos pés à cabeça, iluminado por raios solares anêmicos, levaram vantagem na seleção natural os europeus portadores de genes que lhes conferiam concentrações mais baixas de melanina na pele.
As previsões de Cavalli-Sforza, enunciadas numa época em que a genética não dispunha das ferramentas atuais, acabam de ser confirmadas por uma série de pesquisas.
No ano passado, ocorreu o maior avanço nessa área: a descoberta de que um gene, batizado de SLC24A5, talvez fosse o responsável pelo aparecimento da pele branca dos europeus. [...]
Trabalhos posteriores procuraram elucidar em que época essa mutação genética teria emergido entre os europeus. [...]
Esse refinamento da técnica de sequenciamento de DNA permitiu estimar o aparecimento da cor branca da pele europeia num período que vai de 6 mil a 12 mil anos.
Esses estudos têm duas implicações:
1) Demonstram que as estimativas de que os seres humanos modernos teriam aparecido há 45 mil anos e que não teriam mudado desde então estão ultrapassadas. Nossa espécie está em constante evolução.
2) Demonstram como são ridículas as teorias que atribuem superioridade à raça branca. De 5 milhões de anos, quando os primeiros hominídeos desceram das árvores nas savanas da África, a meros 6 mil a 12 mil anos, éramos todos negros."
Dráuzio Varella: Éramos todos negros. Folha de São Paulo, 26/04/2008.
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