"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 16 de outubro de 2011

"Éramos todos negros"


"Nossos ancestrais europeus foram negros durante dezenas de milhares de anos. Essa hipótese foi formulada 30 anos atrás por um dos maiores geneticistas do século XX, Luca Cavalli-Sforza, depois de conduzir estudos genéticos em centenas de grupos étnicos ao redor do mundo.

Para enunciá-la, Cavalli- Sforza partiu de evidências genéticas e paleontológicas sugestivas de que nossos ancestrais devem ter chegado ao Norte da Europa há cerca de 40 mil anos, depois de passar 5 milhões de anos no berço africano.

Esses primeiros imigrantes eram nômades, caçadores, coletores, pescadores e pastores que se alimentavam predominantemente de carne. Dessa fonte, os primeiros europeus absorviam a vitamina D, imprescindível para a absorção de cálcio no intestino e a boa formação dos ossos.

Nos últimos 6 mil anos, quando a agricultura se disseminou pelo continente, fixou o homem à terra e criou a possibilidade de estocar alimentos, a dieta europeia sofreu mudanças radicais. A adoção de uma dieta mais vegetariana trouxe vantagens nutricionais, menor dependência da imprevisibilidade da caça e da pesca, aumentou a probabilidade de sobrevivência da prole, mas reduziu o acesso às fontes naturais de vitamina D.

Para garantir que o metabolismo de cálcio continuasse a suprir as exigências do esqueleto, surgiu a necessidade de produzir vitamina D por meio de um mecanismo alternativo: a síntese na pele mediada pela absorção das radiações ultravioletas da luz solar.

De um lado, a pele negra, incapaz de absorver os raios ultravioletas na intensidade que o faz a pele branca; de outro, as baixas temperaturas características do Norte da Europa, que obrigaram os recém-saídos da África tropical a usar roupas que deixavam expostas apenas as mãos e o rosto, criaram forças seletivas para privilegiar mulheres e homens de pele mais clara. Num mundo de gente agasalhada dos pés à cabeça, iluminado por raios solares anêmicos, levaram vantagem na seleção natural os europeus portadores de genes que lhes conferiam concentrações mais baixas de melanina na pele.

As previsões de Cavalli-Sforza, enunciadas numa época em que a genética não dispunha das ferramentas atuais, acabam de ser confirmadas por uma série de pesquisas.

No ano passado, ocorreu o maior avanço nessa área: a descoberta de que um gene, batizado de SLC24A5, talvez fosse o responsável pelo aparecimento da pele branca dos europeus. [...]

Trabalhos posteriores procuraram elucidar em que época essa mutação genética teria emergido entre os europeus. [...]

Esse refinamento da técnica de sequenciamento de DNA permitiu estimar o aparecimento da cor branca da pele europeia num período que vai de 6 mil a 12 mil anos.

Esses estudos têm duas implicações:

1) Demonstram que as estimativas de que os seres humanos modernos teriam aparecido há 45 mil anos e que não teriam mudado desde então estão ultrapassadas. Nossa espécie está em constante evolução.

2) Demonstram como são ridículas as teorias que atribuem superioridade à raça branca. De 5 milhões de anos, quando os primeiros hominídeos desceram das árvores nas savanas da África, a meros 6 mil a 12 mil anos, éramos todos negros."

Dráuzio Varella: Éramos todos negros. Folha de São Paulo, 26/04/2008.

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