"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Tradições asiáticas: a Índia Mauria, Hindu e Islâmica

Taj Mahal, conjunto arquitetônico construído pelo imperador Chah Jahan entre 1631-1654 (Agra, Índia)

भारत

* A Índia Mauria. Embora a tendência religiosa da História indiana já estivesse estabelecida no final da época védica, o futuro ainda seria maleável. Ainda estavam em curso novos desenvolvimentos. O monasticismo, por exemplo, invenção dos tempos védicos, provocou a experiência ascética e a especulação filosófica. O jainismo, novo culto muito bem-sucedido, surgiu em reação ao formalismo da religião bramanista, tendo sido criado por um sábio do século VI a.C. que, entre outras coisas, pregava o respeito pela vida animal, assim impossibilitando a agricultura e a criação de animais domésticos. Portanto, os jainistas tenderam a se tornar mercadores; hoje a comunidade jainista é uma das mais ricas da Índia.

* O budismo. O mais importante dos sistema inovadores, no entanto, foi o ensinamento de Buda, "o iluminado", ou "Sábio", como se pode traduzir o seu nome. O seu fundador, Siddharta Gautama, não era um brâmane, mas príncipe de uma classe guerreira do início do século VI a.C. Depois de receber uma educação aprimorada [...], achou sua vida insatisfatória e saiu de casa. Passou, então, sete anos de ascetismo e renúncia, antes de começar a pregar e a ensinar. Estabeleceu uma doutrina austera e ética, cujo objetivo era o de conquistar a libertação do sofrimento conseguindo acesso a estágios mais elevados de consciência. Buda ensinou aos seus discípulos a se disciplinarem e a repelirem as demandas da carne, para que nada impedisse a alma de conseguir o estado abençoado do Nirvana, uma união com a realidade final ou com a bondade que ele acreditava existir além da vida. Pela anulação pessoal, os homens poderiam conseguir se libertar do círculo infindável de renascimento e transmigração, que era o padrão da existência ensinado pela religião do seu tempo e posteriormente pelo hinduísmo.

Buda parece ter tido grande habilidade prática e de organização, inquestionável integridade ética e uma personalidade que rapidamente o tornou um mestre popular e bem-sucedido. Evitou se opor ao bramanismo. O surgimento de comunidades de monges budistas deu à sua obra um cenário institucional que sobreviveria a ele. Buda também ofereceu um papel aos insatisfeitos com a prática tradicional, em particular às mulheres e aos seguidores de castas inferiores, pois aos seus olhos a casta era irrelevante. No entanto, o que ficou conhecido como budismo, a religião desenvolvida pelos seus seguidores a partir dos seus ensinamentos, talvez não expresse verdadeiramente os seus pontos de vista, isentos de características ritualísticas, simples e ateístas. Assim, como todas as grandes religiões, a doutrina de Buda assimilou muitas crenças e práticas preexistentes [...]. Contudo, isto o ajudou a obter grande popularidade e se espalhou séculos depois da morte de Gautama [...], para se tornar a religião mais difundida na Ásia e uma força poderosa na História mundial. [...]

Durante a vida de Buda surgiu um estilo indiano de civilização [...]. Grande parte da primitiva civilização da Índia permanece intangível [...]. Chandragupta construíra um Estado, com sua capital em Patna, que incluía não apenas os dois grandes vales do Indo e do Ganges, mas grande parte do Afeganistão [...] e o Beluchistão. [...]

O filho e sucessor de Chandragupta começou a estender o império em direção ao sul. Mas Açoka, o terceiro imperador da Dinastia Mauria, foi quem completou o processo [...]. Ele deixou muitas inscrições, registros, decretos e mensagens aos seus súditos, o que sugere influências persas e helenísticas; na época a Índia mantinha um contato mais próximo com o mundo exterior do que a China. [...]

[...] o mais importante a respeito dos tempos de Açoka é que a Índia, na época, estava firmemente organizada em castas. Era governada pela burocracia [...]. Além de realizar os deveres esperados de uma máquina governamental - coletar impostos, ajudar a manter a ordem pública, supervisionar a irrigação, por exemplo -, a burocracia de Açoka tinha a tarefa de promover um conjunto de crenças ou, pode-se dizer, uma ideologia. O próprio Açoka era budista. [...]

Açoka também executou obras públicas para beneficiar todos os seus súditos. Mandou construir reservatórios, cavar poços, criar hospedarias em intervalos regulares ao longo das estradas do império e plantar figueiras-de-bengala para dar sombras aos viajantes. [...] As ideias e a literatura religiosa deram um passo rumo à cristalização do hinduísmo, pois foi quando começaram a adquirir a forma final os dois grandes poemas épicos indianos, o Mahabharata e o Ramayana, histórias de deuses, demônios e arrojo histórico. [...] Mas também floresceram nos tempos da Dinastia Mauria cultos mais populares e supersticiosos, um deles ligado bem de perto ao Bhagavad-Gita: o culto ao mais popular de todos os deuses hindus, Krishna [...].

[...] 

Assim, religião, casta e família explicam as longas continuidades da História da Índia. 

* A Índia Hindu. O último imperador da Dinastia mauria foi assassinado por volta de 184 a.C. [...] Um ou dois fatos se destacam nessa confusão. O primeiro em importância é uma série de invasões a partir do noroeste. Os povos da Báctria descendiam os gregos que Alexandre, o Grande, deixara na parte superior do Rio Oxus, onde estabeleceram um reino independente entre a Índia e o Estado selêucida no século III a.C. Logo outros povos os empurraram para a Índia e para o vale do Indo no século I a.C. e seriam seguidos por outros povos que em épocas diferentes se estabeleceram no Punjab, entre eles os partos e os citas. Destes povos invasores, um dos mais interessantes e misteriosos era o de Kushan, que migrara das fronteiras da China e sempre parece ter tido o seu principal foco de interesse na Ásia Central, mas governou um império que em certa época se estendeu desde as estepes até Benares, no Ganges. O povo de Kushan era entusiasta do budismo. Foi na sua época que se começou a esculpir imagens de Buda [...]. 


Esculturas da entrada do templo de Brithadeeswarar, Thanjavur, Índia

[...] A unidade política só reapareceu em 320 d.C., com a fundação de um novo império: o gupta. Antes disso, ainda no apogeu do Império Romano, pode-se distinguir na confusão dos séculos uma contínua perturbação causada por povos provenientes do noroeste. Estes recém-chegados trouxeram novas influências (é provável que o cristianismo tenha aparecido ali no século I d.C.), mas nunca suplantaram a contínua e crescente força da tradição indiana. [...] Na época a maioria dos indianos vivia [...] em aldeias mais ou menos auto-suficientes e não afetadas por fatores externos. [...]

O primeiro imperador gupta [...] estabeleceu a capital em Patna e a sua dinastia governou o norte da Índia unido a partir do vale do Ganges. A paz e a certeza de estarem livres de invasões, sentimentos propiciados pela era gupta, mais tarde levariam muitos indianos a considerá-la uma época áurea [...], um período clássico durante o qual muitas artes puderam ser apreciadas pela primeira vez. Da era gupta sobreviveram os primeiros dos numerosos templos de pedra ricamente decorados com esculturas [...]. A literatura floresceu; durante o reinado dos gupta começou a longa tradição do drama popular indiano com base em histórias contidas nos grandes épicos sânscritos [...]. Também foi uma época de avanços do conhecimento e da filosofia. No século V, matemáticos indianos inventaram o sistema decimal, de enorme importância para a humanidade, que chegou mais tarde ao Ocidente por meio dos califados árabes.

[...]

* Crença e sociedade. No tempo dos guptas já existia algo bem parecido com a futura sociedade hinduísta da Índia. Sua base era o sistema de castas, na época já proveniente da antiga divisão da sociedade védica em quatro classes. A crença religiosa também havia mudado. [...] Se existe um princípio prático fundamental no hinduísmo, é viver a vida de acordo com o lugar de cada um no esquema das coisas. Para os camponeses - e os indianos, em sua maioria [...] -, isto pode significar meras tentativas supersticiosas de assegurar a boa vontade das divindades no templo local, respeito pela casta e pelas suas restrições práticas, participação nos festivais populares [...]. Também existiam cultos mais especializados, a deuses e deusas maiores, como Shiva e Krishna. E ainda um hinduísmo puramente filosófico, bem distante da crueldade dos sacrifícios de animais e da veneração de imagens que ocorriam em nível popular [...].

[...] Nos séculos V e VI o casamento infantil e a introdução de uma prática chamada de sati (que forçava as viúvas a se deixarem queimar nas piras funerárias junto com os restos mortais dos seus maridos) acompanham muitos outros sinais de que as mulheres tiveram de aceitar um lugar muito inferior na sociedade com o passar do tempo. [...]

O budismo também passou por importantes desenvolvimentos [...]. Em vez de ser lembrado principalmente como um grande sábio, Buda era visto cada vez mais como um exemplo destacado dos chamados bodhisattvas, salvadores humanos, que renunciavam ao objetivo de anulação pessoal para permanecerem no mundo ensinando o caminho da salvação. A mudança mais importante foi o aparecimento do chamado budismo do tipo maaiana (Grande Veículo), que, na sua versão mais direta, resumia-se a pouco mais do que venerar o próprio o Buda como salvador divino, manifestação do grande e único Buda celestial. Tornou-se mais popular do que as duras práticas de austeridade e mortificação pessoais antes ensinadas por Gautama. Ele proibira o culto a ídolos, mas a partir do século I foram feitas numerosas imagens suas, que os fiéis cultuavam nos templos. Afinal, o budismo maaiana se tornou a forma dominante desta religião que floresceu no Nepal, na China e no Japão, enquanto a tradição mais antiga se manteve melhor na Indonésia e na Malásia.


Escultura no templo de Brithadeeswarar, Thanjavur, Índia

[...] As instituições sociais indianas, e acima de tudo as castas, impuseram ônus econômicos: como a origem decidia o papel econômico de cada um, o esforço e a aptidão ficavam muito restritos, bem como a ambição de qualquer pessoa, exceto do guerreiro, cuja ambição provavelmente seria satisfeita de maneira um tanto destrutiva.

* A Índia Islâmica. Por volta do ano 500 os guptas davam sinais de perder o controle, e pouco depois a Índia voltou a se dissolver em pequenos principados. Em breve seria novamente devastada por invasores vindos do noroeste - desta vez um ramo dos hunos que conseguiu varrer do Afeganistão o budismo, embora tenha causado um impacto pouco profundo no vale do Indo. O mesmo aconteceu com os árabes que vieram a seguir e conquistaram o Punjab [...]. Sua chegada, no entanto, inaugura a história do islamismo na Índia.

Um segundo influxo mais poderoso [...] de muçulmanos aconteceu no século XI sob a forma de povos turcos que pretendiam permanecer. Em poucas décadas estabeleceram o domínio muçulmano por todo o vale do Ganges, a partir de Délhi. Alguns turcos estavam ansiosos em fazer conversões e perseguiram o hinduísmo, destruindo os templos. [...] Com o islamismo também vieram outras influências. A partir de então, as culturas das Cortes indianas foram fortemente marcadas pelo estilo e pela moda dos persas.

Babur, o homem que restaurou novamente o Império Islâmico na Índia, se considerava muito ligado à tradição persa. Pelo lado paterno, descendia de Timur Lang, e pelo materno, de Gêngis Khan. Portanto, era em parte mongol, e o império que fundou viria a ser chamado de "Moghul" (palavra para designar "mongol") [...]. Babur amava a poesia e a jardinagem, em que os persas se deliciavam (introduziu em Cabul a uva, o melão, a banana e a cana-de-açúcar). Também foi um grande colecionador de livros e um homem altamente culto. Poeta, escreveu uma notável autobiografia, além de um relato de quarenta páginas sobre o Hindustão na época da sua conquista, anotando não apenas os costumes, a estrutura de castas, mas também a vida selvagem e as flores. [...]

Este reino foi aumentado ainda mais por Akbar, neto de Babur, a quem os europeus admiravam e chamavam simplesmente de "o Grande Mongol". [...] No seu governo, tanto a arquitetura como a pintura mongóis atingiram seu apogeu.

Akbar reinou de 1555 a 1605 [...]. Demonstrou grande habilidade em lidar com as diferenças religiosas de seus súditos, e um dos seus primeiros atos como governante foi o de casar com uma princesa rajput (e, portanto, hindu). Antes disto já permitira que as mulheres hindus do seu harém praticassem sua própria religião. Não perseguiu os missionários islâmicos. Logo depois aboliu o imposto individual cobrado pelos antecessores dos não-muçulmanos e as suas finanças foram administradas por um ministro hindu. [...] No conjunto, a impressão deixada pelo reinado de Akbar é de uma tolerância bem direcionada e, em consequência, de um governo mais fácil num império tão diversificado.

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 292-305.

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