"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 15 de outubro de 2011

A Guerra do Paraguai (1864-1870)

Malditas todas las propriedades privadas
que nos privam de vivir y de amar!
(D. Pedro Casaldáliga, Tierra Nuestra, Libertad)

A paraguaia, Juan Manuel Blanes 

Quando o Paraguai se libertou do domínio espanhol, em 1811, Buenos Aires já era a sede dos interesses comerciais ingleses, que ditavam as normas para o comércio internacional na região do Prata. Com a Independência, assumiu o poder José Gaspar de Rodriguez de Francia, El Supremo. Exercendo um poder ditatorial contra os ricos oligarcas ainda ligados aos interesses da Espanha, o governo de El Supremo estabeleceu uma República Popular, que chamou de Ditadura Perpétua, de características bem próprias. Foi criada uma nova ordem econômica baseada em um cooperativismo, isto é, um regime de produção comunitária administrado pelo Estado. Liquidou-se "a impropriedade da propriedade privada, tornando-a propriedade coletiva". O governo promoveu a primeira grande reforma agrária da América Latina e deu-lhe infra-estrutura, fornecendo, além de terra, sementes, implementos agrícolas e gado aos camponeses. Criaram-se as Estâncias da Pátria, onde os camponeses produziam ajudados pelo Estado e dispunham de parte da produção como homens livres.

[...]

Ao mesmo tempo, o governo estabeleceu sua diretriz de acordo com a nova estrutura econômica. Nacionalizou a Igreja Católica, obrigando-a a romper com a Santa Sé, e transformou os conventos em quartéis para defender a soberania do país. Deste modo, eliminou o poder político e econômico da Igreja, igualando os sacerdotes aos homens do povo. Monopolizou, através do Estado, a exportação dos produtos excedentes, em prejuízo da burguesia mercantil, aplicando o lucro obtido em benefício do país. Além disso, empreendeu uma verdadeira revolução cultural, respeitando os costumes dos índios e eliminando o analfabetismo no Paraguai.

Apesar de tudo - e por tudo isso -, a fama de Francia como bárbaro e assassino espalhou-se desde o Prata até a Inglaterra. Por quê? Em síntese, porque sua violência era dirigida contra os ricos: nos cárceres políticos paraguaios da época não existiam pobres (ao contrário de hoje), mas somente ricos - exatamente os que poderiam se voltar contra seu governo.

Agora vejamos os motivos mais amplos. "Francia está organizando uma nação livre e demonstrando que é possível sobreviver sem a submissão a interesses estrangeiros e sem sustentar uma oligarquia parasita. O Paraguai passa a ser, já a partir desse momento, um exemplo péssimo para a América [...]. Por outro lado, El Supremo demonstrou que não há independência política sem independência econômica. Isso era fartamente sabido já naquele tempo: mais justamente pela sua evidência o exemplo paraguaio é mais incômodo. Tanto para os vizinhos dominados como para os dominadores." (CHIAVENATTO, J. J. Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 20.)

Ao contrário do que dizem muitos historiadores, o isolamento do Paraguai durante o governo de Francia não foi escolhido, mas determinado por circunstâncias históricas: por não possuir porto marítimo para escoar seus produtos, o país dependia de Buenos Aires, cuja burguesia se ligava aos interesses imperialistas ingleses. Deste modo, o contrato firmado entre os dois governos para facilitar as exportações paraguaias nunca foi respeitado pelos portenhos, que, além disso, criaram um imposto adicional, especialmente sobre o fumo, principal produto paraguaio de exportação. Foi tentado ainda o contato direto com a Inglaterra, igualmente frustrado. Assim, entre perder a soberania do país ou mantê-la a todo custo, o governo de Francia preferiu a última: fechou as fronteiras, isolando o país contra o imperialismo inglês.

Sob os lemas Ordem e Progresso e Independência ou Morte, e apoiado nos camponeses, artesãos, pequenos comerciantes e industriais, construiu o primeiro país livre e soberano da América Latina, onde a liberdade não era um conceito abstrato, mas o direito à terra, ao trabalho e a seus frutos, traduzido na própria consciência nacional - só destruída com o extermínio de seu povo, em 1870, ao fim da Guerra do Paraguai.

"A crítica mais importante que se pode fazer, historicamente, ao ditador Francia, é ter exterminado a oligarquia econômica do seu país sem conseguir, paralelamente, criar uma classe dirigente. Isso, a longo prazo, foi fatal para o Paraguai - a falta de uma classe dirigente vinculada aos interesses nacionais foi sentida fatalmente por Carlos Antônio López e depois pelo seu filho, Solano López, nos conflitos com a Tríplice Aliança." (CHIAVENATTO, J. J. op. cit., p. 21-22.)

Com a morte de Francia, em 1840, assumiu o governo Carlos Antônio López [...]. Recebeu o Paraguai sem analfabetos, com pleno emprego e com uma estrutura sócio-econômica voltada para os interesses populares. O país estava pronto para o desenvolvimento, que era travado pelos elevados tributos impostos por Buenos Aires à exportação de seus produtos.

Para melhor entendimento do governo de Carlos Antônio López, faz-se necessária uma breve análise da conjuntura sócio-econômica dos outros países platinos naquele período. Eram sociedades dependentes da Inglaterra: alimentavam as indústrias inglesas com matérias-primas baratas e consumiam a preços altos os produtos industrializados da civilização. Aliás, civilização, progresso, ciência etc. eram conceitos muito bem aproveitados pela Coroa inglesa para justificar a ação imperialista na América Latina, sobretudo no Império do Brasil e em Buenos Aires, onde uma aristocracia rural e uma frágil burguesia, respectivamente - ligadas ao capitalismo inglês - dominavam o sistema político.

Nesse quadro, evidentemente, a soberania do Paraguai era uma contradição que precisava ser eliminada para o bem da Inglaterra e das classes dominantes platinas. [...] Quando Carlos Antônio López morreu, em 1862, foi sucedido por seu filho Francisco Solano López. Com uma indústria de base em desenvolvimento, o Paraguai já era o país mais progressista da América do Sul e sem dívida externa. Exercendo o poder também de forma ditatorial, Solano López continuou as diretrizes de seus antecessores.

A conjuntura internacional sofria mudanças que, de certa forma, precipitaram a Guerra do Paraguai. A Guerra de Secessão (1861-1865), nos EUA, refletiu na indústria têxtil inglesa na medida em que o Norte bloqueou o litoral dos Estados Confederados, impedindo as exportações sulistas de algodão para a Inglaterra. Consequentemente, muitas fábricas reduziram sua produção e a possibilidade de desemprego em massa ameaçava o próprio equilíbrio social da Inglaterra.  Se lembrarmos que o Paraguai produzia algodão de boa qualidade, poder-se-ia deduzir o óbvio: a Inglaterra compraria o algodão do Paraguai. Errado! A simples compra do algodão paraguaio era uma contradição para a expansão imperialista, pois fortalecia a economia do Paraguai, dando-lhe condições de, a longo prazo, concorrer com a própria Inglaterra nas suas exportações para o Prata. Na visão do imperialismo, o Paraguai - como seus vizinhos - deveria ser apenas um mercado consumidor tradicional de produtos industrializados e fornecedor de matérias-primas. Então, qual seria a saída para a Inglaterra? Destruir o Paraguai. Estava montado o palco para o primeiro ato da tragédia que caracterizou o aniquilamento do povo paraguaio: a Guerra do Paraguai.


Aspecto da Guerra do Paraguai, Victor Meirelles

Sob um manto de intrigas e calúnias, onde não faltaram as acusações de criminoso, ditador, bárbaro e assassino cruel ao Presidente Solano López, o Império do Brasil e a Argentina (economicamente dependentes da Inglaterra) invadiram o fraco Uruguai, então único aliado do Paraguai, e depuseram seu governo, colocando no poder Venâncio Flores, de tendência antiguaranis. Os pretextos foram vários, mas o objetivo apenas um: atrair o Paraguai em defesa do Uruguai e destruir seu modelo econômico, o que era desejado pelo empresariado inglês.

O Uruguai, por sua posição geográfica, era estrategicamente importante para a subsistência do Paraguai, o que, inclusive, havia levado os dois países a uma aliança de defesa mútua (1850). Desse modo, embora alguns historiadores apontem questões de fronteira (o que em parte era verdade, pois latifundiários brasileiros ocupavam terras uruguaias para criar gado) como causa da invasão argentino-brasileira ao Uruguai, a causa fundamental foi a já apontada: desestabilizar o governo uruguaio de Bernardo Berro e substituí-lo pelo de Venâncio Flores, o que foi feito em prejuízo, inclusive, de interesses brasileiros, representados pelo Barão de Mauá, que possuía grandes investimentos no Uruguai.

[...]

Substituindo o governo uruguaio, o Império do Brasil e a Argentina conseguiram a adesão de Venâncio Flores e firmaram o acordo que ficou conhecido como Tratado da Tríplice Aliança. Esse tratado já tinha sido sugerido pela diplomacia inglesa há pelo menos um ano, mas permaneceu secreto até pouco antes de ser assinado por seus representantes na América do Sul [...]. Segundo a Tríplice Aliança, o Paraguai deveria ser destruído e, entre outras coisas, "os troféus e presas que forem tomados ao inimigo se dividam entre aqueles dos aliados que tenham feito a captura". [...] Quer dizes, determinava-se a própria partilha do Paraguai. Esse tratado foi duramente criticado pelos governos do Peru, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e EUA.

[...]

Os aliados esperavam uma guerra rápida, pela própria superioridade militar de suas forças. Mas o Paraguai resistiu por cinco anos e a guerra só terminou com sua população quase exterminada. "Morreram 96,5% dos homens e dos sobreviventes apenas 1,08% tinha mais de 20 anos. Da população total (800 mil) morreram 75,75% (606 mil). O Paraguai foi destruído, aniquilado completamente [...]". CHIAVENATTO, J. J. O Negro no Brasil - da Senzala à Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 195.

Essa resistência, que ameaçou levar à morte "até o feto do ventre da mulher", como reconheceu o Duque de Caxias ao Imperador do Brasil, explica-se pela própria coesão moral do exército paraguaio, que refletia a própria estrutura sócio-econômica do país.


El ejército de la Pátria será todo el pueblo en
ropa y dignidad de ser el pueblo en armas. Sus
efectivos, los campesinos libres...
(Francia, El Supremo)

[...]

A Guerra do Paraguai foi violenta de ambas as partes, mas deve-se assinalar que, enquanto os paraguaios se prenderam à brutalidade inerente à própria natureza do conflito, do lado brasileiro atrocidades que se caracterizaram como crime de guerra foram cometidos sob responsabilidade do Conde D'Eu, como o incêndio do hospital de Peribebuí, com todos os seus enfermos, velhos e crianças.


Trincheira de Curupayti (detalhe), Cándido López

Esta foi a Guerra do Paraguai. Quem a ganhou? Quem a perdeu?

Houve apenas um ganhador: a Inglaterra, que a financiara. O Brasil conseguiu algumas fatias de terras há muito desejadas e a Argentina anexou o Chaco Austral, igualmente cobiçado. Contudo, não se pode dizer que eles ganharam a guerra, pois a partir dela tornaram-se mais dependentes do capitalismo inglês, principalmente do Banco Rothschild, acumulando enorme dívida externa.

As condições a que ficaram reduzidos os poucos guaranis sobreviventes foram as piores possíveis.

"Para os humildes e estóicos camponeses do Paraguai, o futuro reservava agonias sem nomes [...] Os aliados foram libertar os guaranis de seu tirano e abrir de par em par as portas à civilização moderna, em forma de concessões, financiamentos e inversões estrangeiras e outras influências da Bolsa de Berlim, Londres, Nova Iorque e Buenos Aires. As bençãos do laissez-faire substituíram os males do 'paternalismo', e, como de costume, o camponês se converteu em peão explorado e sem terra." GONZALEZ, J. N. La Guerra al Paraguai - Imperialismo y Nacionalismo en el Plata. Buenos Aires: Sudestada, 1968. p. 104.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 170-176.

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