"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O mundo em 1763

Cron Prindz Christian. Destinado ao tráfico de escravos, operou entre a Costa do Ouro - onde adquiria a sinistra "mercadoria" - e as Caraíbas - onde a vendia aos proprietários de plantações de cana-de-açúcar.

Os três séculos que se seguiram à impressão da grande Bíblia de Gutenberg foram um período de crescente prosperidade em muitas partes do mundo. A população humana total dobrara, de cerca de 400 milhões para quase 800 milhões, a despeito da imensa queda demográfica nas Américas. Metade desse contingente vivia na Índia e na China e era responsável pela maior parte da geração de riqueza mundial. [...]

A população da China, após sofrer sérios revezes pelos efeitos combinados da fome e da invasão mongol, voltara a superar a da Índia. [...] Mas dessa vez o aumento populacional não fora acompanhado por uma queda nos padrões de vida. Camponeses na China, como em qualquer outra parte no século XVIII, tinham um padrão de vida miserável. Mas parece bem certo que em 1763 o padrão de vida médio era mais elevado na China do que na Europa, e muito mais alto do que o do restante do mundo.

A riqueza da China nessa ocasião veio em grande parte de seu papel como eixo de uma vasta rede de comércio, das Filipinas à costa da África. O próprio país continuava a exportar vastas quantidades de suas especialidades tradicionais, porcelana e seda, e permanecia o cliente mais importante do mundo para as especiarias que os países do sudeste da Ásia exportavam. Escravos e ouro eram exportados dos agitados portos da África Ocidental, e a Índia exportava imensas quantidades de tecidos de algodão. Navios espanhóis cruzavam o Pacífico, levando a prata peruana de que os mercados chineses necessitavam para pagar seus impostos, enquanto navios de outras nações europeias forneciam a maior parte do transporte no oceano Índico. O centro gravitacional do comércio mundial acabaria mudando para o Atlântico, mas, em 1763, eram os mares que serviam de rota para a China que recebia movimentação maior.

Um século e meio antes, grande parte desse comércio cairia em mãos japonesas, mas, depois que os mercadores japoneses ficaram proibidos de negociar além-mar em 1603, o país deixou de ter qualquer relação comercial significativa com o restante do mundo. A despeito disso, a economia japonesa avançara poderosamente [...]. A prosperidade jorrava das classes de comerciantes locais [...]. Isso se refletiu no crescimento das cidades [...].

Sem serem afetados, e totalmente indiferentes, por essa agitação comercial nos oceanos a norte e oeste de si, os povos australianos seguiam com seu estilo de vida tradicional. [...]

[...]

Embora a rede de comércio houvesse crescido, ela ainda funcionava praticamente com a mesma dinâmica de 2 mil anos antes. O mais rápido transporte por terra ainda era o carro puxado por cavalo; o mais rápido transporte por água ainda era impelido pelo vento. Em nenhum lugar havia estradas melhores do que as feitas pelos romanos [...]. 

No coração do supercontinente eurasiano, uma nova grande potência - a Rússia - surgira em cena. O amontoado de povos até então sem acesso ao mar que mal podia ser qualificado como nação em 1455 era agora uma força a ser considerada. Sob a liderança de dois soberanos capazes e ambiciosos - Pedro, o Grande, e sua filha Isabel -, o país se abrira para as ideias e a tecnologia europeia. [...] Tendo viajado extensamente na Europa ocidental para conhecer o potencial das outras nações, ele mudara sua capital de Moscou para São Petersburgo, obrigando uma substancial porção da nobreza e a classe mercantil a se mudar com ele. Ele introduziu no país a tecnologia ocidental e revisou completamente o governo russo e o sistema militar. [...] Em 1724 [...] ele inaugurou a Academia Imperial de Ciências, em São Petersburgo.

[...] Ainda na década de 1760, os habitantes da cidade compunham apenas três por cento da população. Ao contrário das nações europeias ocidentais, contava com uma mísera camada dos empreendimentos e energia da classe média, pressionada entre a orgulhosa nobreza e o campesinato miserável [...]. Em 1763, São Petersburgo viu-se em meio a um programa maciço de construção, durante o qual foram criados algumas das empolgantes paisagens que a tornaram uma das cidades mais esplendorosas da Europa. [...]

Divididos em uma infinidade de Estados-nações, os povos da Europa viviam em guerras. Em geral, elas eram travadas por grupos de nações em aliança temporária, com a ajuda de soldados mercenários recrutados por terceiros. [...] Exércitos se deslocavam de um lado para outro do continente, provocando danos cada vez maiores com seus armamentos cada vez melhores, destruindo colheitas e deixando devastação. [...]

As cidades da Europa ocidental eram não só grandes e numerosas como também cresciam sem parar. As duas maiores eram Paris e Londres [...].

[...]

Na América do Norte, os povoamentos coloniais britânicos continuavam ainda essencialmente confinados ao litoral leste [...]. À medida que colonos mais ricos se fixavam junto à costa, os mais pobres, e recém-chegados, eram forçados para o interior.Com o passar dos anos, dois diferentes estilos de vida vieram a caracterizar as duas regiões. Nas cidades a leste, damas e cavalheiros cientes da moda praticavam modos metropolitanos em casas de estilo europeu. Nas regiões fronteiriças, pessoas que viviam e falavam de maneira simples moravam em cabanas de troncos construídas com as próprias mãos; lutavam contra a natureza para obter seu sustento da terra; e, de tempos em tempos, lutavam contra os nativos americanos remanescentes para assegurar seu direito de permanecer ali. Foi o início de uma divisão entre o povo mais rústico do interior e os sofisticados moradores urbanos que se tornaria mais acentuada à medida que a fronteira fosse avançando para o oeste.

Ao sul, nas colônias britânica, francesa e portuguesa, donos de fazendas estavam cada vez mais ricos, usando exércitos de escravos importados e de vida curta para cultivar plantações de tabaco, açúcar e algodão a serem exportados para a Europa. Suas economias estavam entrelaçadas no que ficou conhecido como "comércio triangular".

[...]

Sua eficiência foi uma das maravilhas da época. O inferno na terra que criou não perturbava os que gerenciavam. E sua realidade era algo de que as cheirosas damas, e os não tão cheirosos cavalheiros, na Europa e na América que viviam de seu lucro estavam cuidadosamente protegidos.

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 233-240.

Nenhum comentário:

Postar um comentário