"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Egito Antigo: "dádiva do Nilo"

Pintura mural na tumba da princesa Itet. IV dinastia, 2700 a.C. Na parte superior: cena de caça. Na inferior: cena de trabalhos agrícolas.

1. A importância do Nilo. O Nilo teve influência marcante sobre o desenvolvimento econômico, social, político e cultural do Egito.

Formado pelo Nilo Azul e o Nilo Branco, que se unem junto a atual Cartum, o rio, interrompido por seis cataratas, corre dentro de reduzida faixa verde, em meio a regiões desérticas e deságua em enorme delta no Mediterrâneo. Todos os anos, de junho a setembro, chuvas torrenciais junto às nascentes fazem o Nilo transbordar. Ao retomar seu nível habitual o rio deixa sobre as terras que inundou uma camada de limo fertilizante que proporciona colheitas fartas, no estreito vale cercado de solo árido. Daí ter Heródoto, historiador grego, chamado o Egito "dádiva do Nilo".

Alguém que visite o Egito sem ter previamente ouvido falar algo a seu respeito terá de perceber [...] que o Egito, para onde se dirigem os navios gregos, é fruto de uma dádiva do rio.

Poucos esforços despendem os egípcios para obter frutos da terra. Não precisam sulcar o solo por meio do arado, nem revolvê-lo à custa da enxada ou trabalhar os campos como o têm de fazer outras populações.

Aguardam simplesmente que o rio suba, transborde, inunde, fertilize os campos e torne ao leito normal. Cada um semeia então seu lote de terra e a seguir, solta nos campos porcos e ovelhas que, pisoteando-os, garantem às sementes melhor penetração no solo. Depois apenas têm de aguardar o tempo da colheita [...]. (Heródoto, II, 5 e II, 14)

O Nilo levou os egípcios a construírem diques para impedir a inundação de seus vilarejos na época das cheias, a abrirem canais para a irrigação de terras não atingidas pelas inundações periódicas, a formarem reservatórios de água para enfrentar a época das secas (fevereiro a junho).

O Nilo era a principal via de transporte e de comunicação: embarcações várias desciam o rio levadas pela correnteza, e ventos favoráveis possibilitavam o uso de barcos a vela, rio acima.

2. Evolução histórica do Egito. Por volta de 5000 a.C. os povos do Egito viviam ao longo do vale do Nilo, organizados em pequenos estados chamados nomos, cada qual com seu chefe. Os nomos do Norte e os nomos do Sul acabaram formando dois reinos rivais entre si, o do Alto Egito (vale) e o do baixo Egito (delta). Cerca de 3000 a.C. esses dois reinos foram unificados por um príncipe do Alto Egito, Menés, intitulado faraó, tornando-se a suprema autoridade do país, rei e deus ao mesmo tempo.

A partir de Menés a história do Egito se desenrolou cobrindo aproximadamente 3000 anos, dividida segundo as várias dinastias de reis, em três períodos conhecidos por Antigo Império, Médio Império e Novo Império.

* Antigo Império (ca. 2800 a 2200 a.C., da I à VI dinastias). Teve por capital Mênfis, no delta. Nesse período os egípcios apenas transpuseram suas fronteiras em busca de matérias-primas que não possuíam, como ouro (Núbia), cobre (Sinai), madeira de cedro (Líbano). O Antigo Império terminou em consequência do rompimento da unidade política, causado pelo enfraquecimento da autoridade do faraó, por lutas entre vários nomos em disputa de poder, por agitações internas. Seguiu-se um período intermediário que durou cerca de 150 anos (da VII à X dinastias).

* Médio Império (ca. 2050 a 1750 a.C., da XI à XII dinastia). Príncipes do Alto Egito restauraram a unidade política do império, transformando Tebas em capital e dando ao país uma administração sólida e grandes prosperidade. O Médio Império se dissolveu em consequência de novas agitações políticas internas que enfraqueceram o país, permitindo fosse invadido pelos hicsos, povo nômade de origem asiática. Dominaram facilmente a região do delta, graças ao seu poderio militar, possuindo armas muito eficientes e carros de combate puxados a cavalo. Com a ocupação do Baixo Egito pelos hicsos começou o segundo período intermediário, que durou aproximadamente 150 anos (da XIII à XVII dinastias).

* Novo Império (ca. 1580 a 1090 a.C., da XVIII à XX dinastias). Mais uma vez príncipes de Tebas, no Alto Egito, restabeleceram a unidade do império. Os hicsos foram expulsos e os egípcios, sob Tutmósis III e Ramsés II, expandiram-se territorialmente, assegurando com isso ao país uma fase de extraordinária riqueza e prosperidade. Todavia novas agitações internas e novas ondas de povos invasores provocaram o declínio do império egípcio, que entrou em decadência e foi conquistado pelos assírios (670 a.C.). Após breve reerguimento - Renascimento Saíta - sob os príncipes da cidade de Saís, que expulsaram os assírios, o Egito foi conquistado sucessivamente pelos persas (525 a.C.), pelos gregos (332 a.C.) e pelos romanos (30 a.C.).


3. A sociedade egípcia


Faraó
Para seus súditos era filho de deuses e deus ele próprio. Tinha poder absoluto, dispensava justiça, era o administrador supremo do país. Com a ajuda de funcionários por ele escolhido, zelava pela unidade e pela defesa do império, mantendo a ordem e a paz.

Sacerdotes
Formavam a camada mais culta do país; encarregavam-se das cerimônias religiosas e da transmissão da cultura; constituíram uma classe extremamente poderosa e rica, sobretudo durante o Novo Império, quando os templos receberam grandes extensões de terras e parte das riquezas conquistadas a outros povos.

Escribas
Indivíduos provindos de várias classes, que aprenderam a ler e escrever, rudimentos de aritmética e de medicina, em escolas do palácio real ou dos templos, a fim de seguir carreira administrativa ou religiosa. Para a carreira sacerdotal estudavam as tradições religiosas; para a carreira administrativa, as leis e regulamentos. Formavam uma classe de grande prestígio, desempenhando papel importante no governo ou no clero, chegando mesmo a cargos de altos funcionários, ministros de Estado ou sumos sacerdotes.

Nobres
Geralmente pertencentes às famílias governantes dos nomos (províncias), que conquistaram grande destaque, particularmente durante o primeiro período intermediário e o Médio Império.

Soldados
Como classe distinta só adquiriu importância durante o Novo Império, na fase de expansão territorial, quando foi organizado um exército regular, possibilitando a ascensão das classes mais humildes.

Artesãos
Trabalhavam como pedreiros, carpinteiros, desenhistas, escultores, entalhadores, pintores, marceneiros, tecelões, ourives, etc., nas grandes obras públicas, templos, túmulos, palácios, recebendo seu pagamento em rações de alimento.

Camponeses
Compunham a maioria da população. Não eram, porém, donos de terras: trabalhavam nas propriedades do faraó, dos sacerdotes, e tinham o direito de conservar para si apenas uma pequena parte dos produtos colhidos. Pagavam pesadas taxas ao governo; além disso, na época das cheias do Nilo eram convocados para a construção de estradas, diques, canais de irrigação, palácios, túmulos e templos.

Escravos
Ao que parece, os egípcios só tiveram como escravos elementos estrangeiros, capturados em guerra, e foram relativamente pouco numerosos, a não ser no período de conquistas durante o Novo Império. Eram encarregados dos trabalhos mais árduos e pesados. Alguns serviram no exército, outros fizeram carreira administrativa, - graças a seus conhecimentos de línguas -, alguns foram libertos.

Cenas de trabalho 

“Vi o trabalhador em bronze em seu ofício, na boca do forno; seus dedos estavam mais enrugados do que a pele do crocodilo e cheirava mais do que restos de peixe. O cortador de pedra procura trabalho em toda espécie de pedras duras. Quando termina seu trabalho, tem os braços cansados. Quando ele se assenta, ao crepúsculo, sua espinha e suas coxas estão quebradas. O barbeiro vai de rua em rua e procura seu cliente. Ele se aplica fortemente trabalhando com seus braços para se saciar, como uma abelha que se nutre com seu trabalho. O jardineiro leva pesados fardos; de manhã rega o alho-porro, à tarde a vinha. O pescador é o mais miserável de todos os trabalhadores; trabalha no rio, ao lado dos crocodilos.” (ERMAN, E. “Sátira dos Ofícios do Médio Império”. In: L’Egipte des pharaons. Paris: Payot, 1952. p. 238-239)

4. Economia egípcia. A base da economia egípcia sempre foi a agricultura; os principais produtos da terra eram o trigo, a cevada, a lentilha, frutas, legumes, linho, algodão, papiro. O papiro, caniço natural do delta, servia para fazer uma espécie de papel usado até a Idade Média. Era utilizado ainda para a fabricação de barcos, esteiras, cestas, cordas, sandálias.

Embora a agricultura fosse a fonte mais importante de riqueza para os egípcios, estes também desenvolveram a exploração de pedreiras e de jazidas de metais e criaram uma manufatura muito aperfeiçoada de artigos têxteis, de cerâmica, de vidro e de ourivesaria.

A partir do Médio Império o comércio externo começou a expandir-se trocando mercadorias com Creta, Assíria, Palestina, Mesopotâmia, e teve excepcional destaque durante o Novo Império, quando navios egípcios cruzavam o Mediterrâneo e o Mar Vermelho para alcançar a Europa e a Ásia. Nesse período o Egito exportou, em quantidade, trigo, tecidos de linho e cerâmicas finas e importou cobre, bronze, ferro, ouro, prata, marfim, madeiras, pedras semipreciosas (lápis-lazúli, turquesa), perfumes, especiarias, peles de animais, plumas de avestruz, armas.

O estado egípcio, centralizado nas mãos do faraó, tinha controle absoluto sobre a exploração de pedreiras e minas e sobre o comércio externo; durante o Novo Império esse controle estendeu-se a todos os setores da economia.

5. Religião egípcia. Os egípcios eram politeístas, isto é, acreditavam em vários deuses, alguns representados por cabeças de animais. Cada cidade tinha seus deuses particulares e, quando se tornava capital do império, esses deuses passavam a ser adorados em todo o Egito.

No Antigo Império adorou-se Rá, deus-sol, e seus descendentes Osíris, deus da morte, com a esposa Ísis e seu filho Hórus. Os faraós intitulavam-se filhos de Rá. Durante o Médio e o Novo Império adorou-se Amon, protetor da cidade de Tebas, que passou a chamar-se Amon-Rá.

Em honra aos deuses foram construídos templos gigantescos, magnificamente decorados com esculturas, baixos-relevos e inscrições hieroglíficas, destacando-se, na região de Tebas, os templos de Lúxor e de Carnac.

Os egípcios acreditavam na imortalidade e, por isso, era necessário conservar o corpo depois da morte. Aqueles que podiam sustentar as elevadas despesas dos ritos funerários dispensavam cuidados especiais aos mortos, embalsamando-os, transformando-os em múmias, protegidas por máscaras mortuárias, guardadas em sarcófagos. A múmia teria na vida do além-túmulo as mesmas necessidades terrenas e, assim, junto a ela eram colocados alimentos, roupas, móveis, perfumes, seus pertences de valor, tudo enfim de que ela poderia precisar.

Os túmulos dos faraós, dos nobres e dos ricos eram construídos e decorados como casas. Durante as duas primeiras dinastias os túmulos eram retos em cima, com paredes inclinadas, com várias câmaras, às vezes subterrâneas, chamadas mastabas. Essa forma evoluiu para a de pirâmide, sendo usada durante todo o resto do Antigo Império e no Médio Império. Durante o Novo Império, para evitar a pilhagem, construíram-se túmulos subterrâneos chamados hipogeus.

6. Escrita e literatura. A escrita surgiu contemporaneamente à unificação política (IV milênio a.C.) e foi sofrendo uma evolução que, partindo de símbolos pictóricos, aproximou-se da representação de sons, sem entretanto conseguir criar uma escrita alfabética. Até o fim da civilização egípcia surgiram três tipos:

- Hieróglifos: uma combinação de ideogramas com fonogramas; usada geralmente para inscrições oficiais e sagradas, em pedra;
- Escrita hierática (ou sacerdotal): forma simplificada dos hieróglifos; usada para se escrever na madeira (com pincel) ou no papiro (com pena de ganso);
- Escrita demótica (ou popular): forma cursiva da hierática; usada para cartas, contas ou negócios, especialmente sobre papiro.

Os primeiros livros egípcios foram escritos a partir de 4000 a.C., aproximadamente, em longos rolos de papiro. Alguns tinham conteúdo religioso, como o Drama menfítico (fim do IV milênio a.C.), o Hino de Iknáton (do Novo Império) e o Livro dos Mortos, que era colocado entre as faixas das múmias. Outros contavam aventuras, sendo talvez os primeiros livros de estórias, como as Aventuras de Sinhuê. Do Novo Império, chegaram até nós, entre outras obras, a Canção do harpista e o Discurso do camponês eloquente, refletindo considerações de caráter moral e religioso.


O escriba

Desejo que ames a escrita mais do que a tua própria mãe. Descortino para ti os encantos da arte de escrever; nenhuma outra profissão tem encantos maiores. Em todo o país nada existe capaz de igualar esta arte em beleza. O aprendiz de escriba, mal inicia, criança ainda, seus estudos, já é alvo de saudações e passa a servir de mensageiro. Quando de seu regresso não terá de se ocupar com trabalhos pesados, Dentre todos que exercem uma profissão somente o escriba não está sujeito a receber ordens. Ele próprio manda. Se souberes escrever, terás na profissão de escriba vantagens maiores às das demais profissões. (De um papiro egípcio)

7. Ciência egípcia. Os egípcios desenvolveram a aritmética, conseguindo efetuar cálculos dos mais complicados, embora só soubessem somar e subtrair. Devido às enchentes do Nilo, que frequentemente arrancavam os marcos de limites das terras, desenvolveram também uma geometria para medir as áreas e assim restabelecer os marcos. Sabiam também medir áreas de triângulos, retângulos e hexágonos, ou o volume de cilindros e pirâmides.

Depois do Médio Império fizeram progressos apreciáveis na medicina. Sabiam reduzir fraturas, curar feridas e conheciam as propriedades de certas ervas e de alguns minerais. Sabiam da importância do coração e o significado da pulsação; tinham bons conhecimentos de anatomia humana; compreenderam que as moléstias tinham causas naturais e não mágicas, como ainda acreditava a maioria dos povos da época e mesmo de épocas posteriores.

Já no III milênio a.C. os egípcios chegaram a elaborar um calendário solar - o mais perfeito da Antiguidade - que lhes permitia, entre outras coisas, prever as cheias do Nilo. Compunha-se de 365 dias, agrupados em 12 meses de 30 dias, e mais cinco dias adicionais. Dividiram o dia e a noite em 12 partes iguais, dando origem às nossas atuais horas. Para medir o tempo usavam o relógio de sol e, mais tarde, o relógio de água, a clepsidra, que serviu até a invenção dos primeiros relógios mecânicos, já em plena Idade Média. HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 13-21.

8. A vida cotidiana dos antigos egípcios. A maior parte da população egípcia morava em pequenas cabanas feitas de junco, madeira e barro. As casas eram construídas nos locais mais elevados, para não serem atingidas pelas inundações. Essas casas, além de fornecer abrigo nas noites frias, protegiam das tempestades de areia. Nas épocas de muito calor, as famílias procuravam os telhados para tomar ar fresco e fugir do mormaço do interior das casas.

A casa dos camponeses era simples, geralmente com uma única divisão e quase sem móveis. Os camponeses possuíam apenas algumas esteiras, alguns utensílios de cozinha e alguns vasos.

As casas dos egípcios mais ricos eram mais confortáveis. Feitas com tijolos de barro secos ao sol, elas eram bem decoradas e mobiliadas. Possuíam camas, mesas, cadeiras, e os bancos tinham assentos de couro ou de palha. Mesmo as casas de alguns artesãos, que não eram ricos, eram bem melhores que as casas dos camponeses.

A alimentação dos egípcios consistia de pão, cebola, alho, fava, lentilha, rabanete, pepino e peixe. Essa alimentação era regada por cerveja não fermentada. Os pobres só comiam carne e frutas nos dias de festas. O vinho só aparecia na mesa dos ricos, que, além dos alimentos citados, consumiam frutas, queijos e carnes de animais domésticos e selvagens.

Em suas atividades de caça e pesca no Nilo, os egípcios navegavam em pequenas e frágeis embarcações feitas de feixes de papiro atados. Os pescadores trabalhavam em grupos e utilizavam enormes redes. Os nobres pescavam só por diversão, com o auxílio de lanças.

Os camponeses e artesãos vestiam-se apenas com um pedaço de tecido, colocado em forma de tanga em volta da cintura. As mulheres usavam uma longa túnica e os meninos geralmente andavam nus.

Os ricos usavam trajes mais requintados. Os nobres, por exemplo, usavam um saiote pregueado; suas mulheres, vestidos bordados com contas. Nas cerimônias, tanto os homens como as mulheres usavam pesadas perucas. Além disso, independentemente de idade ou sexo, os egípcios gostavam de usar vários objetos de enfeite - tiaras, brincos, colares, anéis, braceletes e pulseiras. Esses objetos podiam ser de ouro, prata, pedras semipreciosas, contas de vidro, conchas ou pequenas pedras polidas de cores variadas.


Uma família egípcia

Os egípcios tinham ainda seus jogos e divertimentos. Os jovens nobres, por exemplo, costumavam sair em carros puxados por cavalos para ir ao rio pescar, apanhar aves ou caçar hipopótamos e crocodilos.

A luta e a natação eram os esportes mais populares. Os barqueiros costumavam formar equipes e fazer competições no rio. Nessas ocasiões iam armados com paus a fim de derrubar seus adversários na água.

Os egípcios apreciavam muito os jogos de tabuleiro. Esses jogos assemelhavam-se aos jogos de xadrez e de damas que conhecemos hoje.

As crianças egípcias também tinham seus jogos e brinquedos. Gostavam muito de dançar, disputar jogos de equipe, pular carniça e brincar com bonecas e bolas. MILLARD, Anne. Os egípcios. São Paulo: Melhoramentos, s.d. p. 26.


Meninas brincando

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