"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 4 de outubro de 2011

"Navegar é preciso": grandes descobrimentos marítimos europeus

Monstros marinhos: imaginário na época das grandes viagens marítimas dos séculos XV e XVI

"Navegar é preciso, viver não é preciso".
(Lema da escola de Sagres)

* Medos e ousadias. As grandes navegações são consideradas um momento histórico marcado por aventuras incríveis. Ao navegarem por mares nunca antes navegados, os europeus descobriram terras e conheceram outros povos e culturas. Muitas foram as expedições realizadas, algumas vitoriosas, outras derrotadas pelas armadilhas da natureza ou em razão do desânimo de seus participantes diante do desconhecido. O medo e a fantasia foram parceiros nessas aventuras, acompanhando as tripulações e se fazendo presentes nos naufrágios e nas conquistas.

Para guiar as tripulações, não bastavam os instrumentos de navegação, como a bússola e o astrolábio. Era preciso também ambição, coragem, ousadia, pois muitas histórias falavam de monstros marinhos, serpentes gigantescas, dragões devoradores. A gravura acima registra bem esses momentos em que a fantasia e a lenda se misturam com a capacidade técnica de, pela prática de novos conhecimentos, vencer obstáculos e realizar conquistas. As figuras imaginárias convivendo com instrumentos científicos mostram como a razão e a fantasia estavam presentes nessas aventuras.

A ousadia e a ambição conseguiram superar o medo do desconhecido, mas não se pode esquecer que os europeus contaram com condições que os levaram a vencer os obstáculos. Novos modelos de navios - as caravelas - substituíram as antigas galeras, com o que foi possível programar viagens pelos mares mais rebeldes e de difícil navegação. Navios armados com canhões garantiram aos europeus uma supremacia indiscutível diante de seus inimigos.

Os conhecimentos obtidos no campo da astronomia também contribuíram para facilitar as viagens. Para navegar com mais segurança era importante, por exemplo, saber calcular latitudes e utilizar bem instrumentos como a bússola e o astrolábio. A bússola teve seu uso difundido na Europa um pouco antes da grande expansão marítima. As navegações e as descobertas das expedições reforçaram as novas ideias de que a Terra era redonda, e já não se aceitava o geocentrismo.

Assim, a grande aventura marítima pôde ser realizada. A razão e a imaginação foram envolvidas no empenho em conhecer, modificar e dominar outros mundos em nome do rei, da fé, da espada e do poder de vencer. Não só navegar era preciso, mas também assegurar as conquistas e multiplicar as riquezas.

Ilustrações de monstros humanos, Sebastian Münster

* Tempos modernos. Os tempos modernos se fizeram acompanhar, no início, por mudanças significativas em muitos aspectos da vida europeia e que tiveram repercussões também em outras regiões do mundo. Venceram-se preconceitos, superaram-se medos, recriaram-se fantasias. Ocorreram mudanças não apenas na maneira de compreender e explicar o mundo; novos hábitos foram introduzidos, desenvolveu-se uma nova ordem econômica, agilizou-se o comércio, abandonaram-se enfim as práticas feudais.

A expansão marítima teve ligações com os questionamentos e as inovações que acompanharam o Renascimento e, politicamente, com a formação do Estado moderno na Europa. Assim, é impossível analisá-la sem mencionar as mudanças econômicas, a intensificação das atividades comerciais, o fascínio pelas especiarias, a luta da burguesia para consolidar sua riqueza.

Por outro lado, só a sedução da riqueza pode justificar o envolvimento de tantas pessoas nessa grande aventura de busca e descoberta de novos caminhos marítimos. O comércio feito na movimentada rota do Mediterrâneo deixava a desejar. A tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, alterou bastante o comércio de especiarias, pois as taxas cobradas pelos turcos encareciam os produtos, criando dificuldades para sua revenda.

A expansão marítima ampliou a participação de outras nações europeias na procura dos produtos orientais, embora no primeiro momento ela visasse apenas ao litoral africano. As cidades italianas que monopolizavam o comércio no Mediterrâneo, sobretudo Veneza, foram aos poucos perdendo a primazia, à medida que novos caminhos eram descobertos e o oceano Atlântico se tornava a mais importante rota comercial europeia.

A procura pelas mercadorias orientais constituía o principal estímulo para movimentar o comércio, mas era importante também que os produtos chegassem à Europa com preços atraentes, que permitissem maior lucro. Isso já não estava acontecendo. No século XV, as mercadorias atingiram preços fabulosos. Havia muitos intermediários até a chegada dos produtos ao consumidor, de modo que era preciso encontrar uma maneira mais direta de fazer o comércio. Portugal teve atuação fundamental para que novas rotas fossem descobertas.

[...]

Na busca de novas rotas, os portugueses inicialmente tomaram Ceuta, em 1415, cidade moura no norte da África que representava posição privilegiada para o mercado de ouro, de escravos e de muitos produtos procedentes do Oriente. [...] Depois de Ceuta, foi a vez da ilha da Madeira (1425), de Açores (1427), do cabo Bojador (1434) e de uma série de novas descobertas ao longo do litoral africano.

A espada, a cruz e a fome iriam comandar as conquistas europeias, segundo o poeta chileno Pablo Neruda. A espada representava a força, a natureza militar da conquista, e a cruz, a missão religiosa que procurava amenizar a violência, com a ideia de catequizar os infiéis, os não-cristãos. Os portugueses davam a suas conquistas o aspecto de uma nova cruzada.

Foi o navegador Bartolomeu Dias que comandou a grande viagem que aproximaria Portugal do tão sonhado caminho para as Índias. [...]

Vasco da Gama foi responsável por um momento importante da expansão marítima: a chegada às Índias, em 1498. 

As dificuldades foram imensas para o comandante Vasco da Gama, que retornou a Lisboa em julho de 1499, quase dois anos depois do início da viagem. Mas os lucros obtidos compensaram os investimentos, atingindo 6 000%. [...]

Pedro Álvares Cabral iria dar sequência aos grandes êxitos da navegação portuguesa. Comandando uma frota de treze navios e cerca de 1300 tripulantes, partiu para as Índias a fim de continuar os contatos iniciados por Vasco da Gama. Cabral tinha também outras missões. Uma delas era tentar reconhecer os limites definidos pelo Tratado de Tordesilhas, assinado com a Espanha em 1494, que estabelecia como pertencentes a Portugal as terras encontradas a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.

Pelo tratado, boa parte do território brasileiro já estava, assim, incorporada aos domínios portugueses antes mesmo da chegada de Cabral, ocorrida em 22 de abril de 1500. Era uma terça-feira [...] quando sinais de terra foram avistados pela tripulação, segundo relatou o escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha. Cabral seguiu depois rumo a Calicute, onde chegou a guerrear com comerciantes muçulmanos.

[...]

Foi o italiano Cristóvão Colombo [...] o responsável pelo primeiro grande êxito relacionado aos empreendimentos espanhóis. Envolvido com o espírito questionador dos pensadores renascentistas, Colombo era não apenas um aventureiro ambicioso, mas também um estudioso da navegação. Conhecia cartografia e acreditava que a Terra era mesmo redonda - verdade que a maioria dos europeus ainda não aceitava.

Para comprovar suas especulações, Colombo queria circunavegar a Terra, partindo em direção ao Ocidente para chegar ao Oriente. [...]

Colombo tomou inicialmente o rumo das ilhas Canárias, dali chegando às Índias, em cumprimento da missão que lhe fora destinada pelo rei da Espanha. Em 12 de outubro de 1492 descobriu a ilha de Guanaani - assim chamada pelos habitantes locais -, rebatizada por ele como São Salvador. No dia seguinte fez contato com os nativos, segundo ele gente muito bonita, jovem e de boa estatura [...].

A relação dos navegantes com os nativos foi amistosa, e Colombo pensava haver chegado às Índias, ao continente asiático. No entanto, estava em solo americano, distante de suas pretensões e de seu sonho de encontrar ouro. [...]

[...] Ele não aceitara a ideia de que chegara à América, conforme afirmou o navegador florentino Américo Vespúcio em seu livro Mundus Novus [...]. Américo Vespúcio fez em 1504 uma viagem à América patrocinada pela Espanha, e em sua homenagem o continente recebeu esse nome.

Anos depois de Colombo haver chegado à América, o navegador espanhol Vasco Nunez Balboa realizou, em 1513, outro feito importante: atravessando o istmo do Panamá, alcançou o oceano Pacífico. [...]

Mas foi Fernão de Magalhães, navegador português a serviço da Espanha, quem comandou a expedição que partiu em setembro de 1519 para realizar a primeira viagem de circunavegação. Costeando a América do Sul [...] a expedição atingiu o oceano Pacífico, chegou à Índia e voltou à Espanha, contornando o cabo da Boa Esperança. A longa viagem durou três anos. [...]

[...]

As viagens marítimas contribuíram para que os europeus tomassem conhecimento da existência de outras terras e outras culturas. Oceanos e mares que antes provocavam tantos temores transformaram-se em vias comerciais importantes. As descobertas significaram riquezas para os que estavam envolvidos nos negócios marítimos, a certeza de que a Terra é redonda e avanços significativos na arte da navegação.

A Espanha conseguiu posição de destaque na economia internacional. Graças aos navios abarrotados de ouro e prata que passaram a chegar de suas possessões na América, foi o maior e mais rico império até o século XVII. Mesmo assim, tal como os portugueses, os espanhóis não conseguiram manter por muito tempo seu poderio político e econômico. Os lucros obtidos com as descobertas foram gastos com luxo e ostentação na corte e com a manutenção de um número excessivo e crescente de funcionários burocratas.

[...]

Os ingleses tornaram-se famosos como contrabandistas e piratas. Um dos mais conhecidos corsários ingleses foi o almirante Francis Drake, que acumulou um tesouro significativo para o reino britânico. Os ingleses conseguiram também lucros expressivos com o tráfico de escravos [...].

A pirataria e o contrabando eram práticas comuns não só entre os ingleses. Os franceses também navegavam pelas costas do oceano Atlântico, atacando navios espanhóis e portugueses. [...]

Os holandeses tinham forte presença no comércio europeu da época, como revendedores e produtores de mercadorias. [...] Os holandeses destacaram-se principalmente como comerciantes e financistas, tendo patrocinado muitas das atividades da economia colonial, como a produção açucareira das colônias portuguesas.

[...]

Não bastava "descobrir" novas terras. Era necessário ocupá-las. [...] a ocupação das terras era importante para garantir a conquista, o direito de explorar as riquezas e dominar os povos que nelas habitavam. [...]

A América não era, porém, uma terra de ninguém. Sua história começara bem antes de os europeus iniciarem a conquista. Era habitada por povos de diferentes culturas, quando seus "descobridores" resolveram colonizá-la. Os europeus foram, na verdade, invasores. Tem razão o historiador Ruggiero Romano quando afirma que "violência, injustiça, hipocrisia caracterizam a conquista" empreendida pelos iberos no século XVI.

A desigualdade de forças, a resistência dos nativos da América e a ambição dos conquistadores transformaram a colonização numa guerra violenta. Quando não se morria em luta aberta, na qual prevalecia o poder das armas, morria-se mais lentamente, pela imposição de hábitos culturais que destruíram costumes ancestrais dos povos conquistados.

[...]

Em nome do bem, com a ajuda da Igreja Católica, espanhóis e portugueses realizavam um amplo extermínio de povos e culturas. O trabalho de catequese foi mais uma forma de consolidar a dominação, de propagar a superioridade dos cristãos europeus sobre os povos conquistados. Os índios e, logo depois, os africanos escravizados sofreram terrivelmente. Para os colonizadores, eles nem sequer seriam seres humanos dotados de alma.

REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005. p. 157-166, 170-171.

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