"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 1 de outubro de 2011

"Soy loco por ti América"

Che Guevara

"Somente seremos livres se os povos da Ásia, África e América Latina o forem também".
[George Mason Murra, dirigente dos Panteras Negras]

Quando o nome América apareceu, pela primeira vez, no mapa de Waldssemüller, identificando a parte do globo que viria a ser chamada de Novo Mundo, configurava uma unidade geográfica sem fronteiras. Mais tarde, os conhecimentos acerca dos seus acidentes geográficos, clima e população demonstraram a extrema diversidade do continente. A evolução das sociedades americanas viria a destacar e aprofundar as suas diferenças, apesar das semelhanças dos seus processos históricos.

Um dos fatores de diferenciação é a diversidade étnica e cultural das sociedades americanas. Trezentos anos de Colonização desencadearam um processo migratório que se prolonga até nossos dias. Às comunidades indígenas, em si tão diversas em termos de desenvolvimento cultural, vieram juntar-se os colonizadores brancos e a grande massa de negros africanos trazidos à força como escravos. Esse processo contribuiu desigualmente para a formação dos perfis das sociedades nacionais.

Brancos, negros e índios distribuem-se desproporcionalmente de uma região para outra, tanto que se pode falar de uma América branca (a Anglo-Saxônica e os países do Prata), uma América índia (os países andinos), uma América hispano-índia (as áreas centro-americanas e o Paraguai) e uma América negra (parte das Antilhas), sem esquecer os países de mestiçagem multirracial, como o Brasil.

Além de línguas diferentes, os grupos populacionais que vieram para a América trouxeram outros elementos culturais de suas áreas de origem, o que explica a variedade de costumes, tradições e culturas populares do continente.

Mas o fator principal de diferenciação das sociedades americanas é, sem dúvida, o desenvolvimento econômico desigual, apesar de grande parte do passado colonial comum. O Período Colonial não marcou tão profundamente as áreas de colonização de povoamento como o fez com as de colonização de exploração. Mesmo nestas últimas, havia sensíveis diferenças entre as regiões de plantations escravistas e as de encomiendas, o que explica em parte a evolução distinta do campesinato na América contemporânea.

Os mais 150 anos de História independente e do posterior desenvolvimento capitalista vieram aprofundar as contradições entre as áreas americanas, sobretudo entre a América Anglo-Saxônica, que se tornou industrial e imperialista e a maior parte do continente, chamada hoje de América Latina, integrante, junto com a África e a Ásia, do Terceiro Mundo. É nesta parte do mundo que, nos dias atuais, se desenvolve um processo agudo de lutas populares de libertação nacional, e nele a América Latina busca desempenhar papel fundamental.

O cenário em que se desenvolvem as lutas de classes na América Latina forjou-se ao longo de três séculos de exploração colonial e de um período menos longo, porém mais predatório, de dominação imperialista europeia e, depois, norte-americana. O latifúndio, a monocultura de exploração e as formas pré-capitalistas de exploração de mão-de-obra ainda constituem considerável parcela da realidade agrária de muitos países latino-americanos. A industrialização, concentrada em alguns setores de interesse do capitalismo internacional e realizada tardiamente, em uma época em que a economia mundial já se encontrava dominada pelo grande capital monopolista, não permitiu um desenvolvimento autônomo, e tornou os países latino-americanos extremamente dependentes dos pólos econômicos mundiais, e, consequentemente, das flutuações e crises do capitalismo internacional. Suas classes dominantes são constituídas por oligarquias agroexportadoras ou grandes comerciantes e banqueiros aliados ao capital internacional, ou por fraca burguesia, até hoje incapaz de levar adiante um projeto nacional desenvolvimentista. O crescimento demográfico acelerado tornou mais agudos os problemas de sobrevivência de grande parte da população do continente.

A instabilidade política, decorrente do quadro de subdesenvolvimento e miséria de vastas regiões da América Latina, aumenta o papel político-institucional das Forças Armadas, em geral conservadoras, e torna a região vulnerável a toda sorte de manobras do imperialismo, desde os programas de ajuda econômica até golpes de Estado, realizados por elites militares educadas em centros de treinamento de oficiais norte-americanos. A falta de canais políticos de decisão e participação popular levou tanto a episódios de luta armada por parte de militantes do povo, quanto ao fenômeno do caudilhismo militar ou civil, seja sob a forma de ditaduras reacionárias, seja criando regimes progressistas. Nesse quadro marcado pela violência, pelo militarismo e pelo autoritarismo, fracassaram os movimentos burgueses liberais de caráter reformista, que perderam a sua força ideológica.

Nem as ditaduras militares reacionárias ou progressistas, nem o reformismo burguês foram capazes de resolver os problemas fundamentais da América Latina. E a cada avanço do movimento popular, o imperialismo responde com táticas que vão do terrorismo e da repressão policial até o abrandamento das formas autoritárias, mas sem perder o controle da situação politica.

Entretanto, nas últimas décadas, o imperialismo vem sofrendo derrotas e recuos em alguns países. A Igreja Católica já se coloca em muitas sociedades a favor dos pobres. Os movimentos populares ampliam a sua base social. A Revolução Cubana e a experiência socialista do Chile são dois marcos das lutas populares na América Latina e assinalam dois processos históricos distintos e que tiveram, também, soluções diferentes. Mais recentemente, a Revolução Nicaragüense mostrou outra forma de concepção e organização da luta popular pela libertação econômica e pela democracia.

Luta armada? Eleições? Pronunciamentos militares? O futuro da América vai depender fundamentalmente dos rumos que tomarem os seus movimentos sociais. O continente, inquieto e explosivo, é um campo aberto aos processos revolucionários dos povos, no sentido da sua emancipação social e da sua redenção como homens.


O que está acontecendo na América só pode ser entendido a partir das raízes históricas da opressão e das lutas de libertação dos povos americanos. A História do continente americano nasceu e se desenvolveu seguindo dois caminhos diferentes: um junto ao povo e outro contra o povo. Como José Carlos Mariátegui, sabemos que "no conflito entre exploradores e explorados, na luta entre capitalismo e socialismo, a neutralidade intelectual é impossível".

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 13-14.

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