"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 2 de maio de 2013

A vida no Império Romano e em suas fronteiras


Para quem não era cristão, nem judeu, nem parente próximo do imperador, a vida no Império Romano podia ser tranquila e agradável. Podia-se viajar da Espanha ao Eufrates, do Danúbio ao Nilo graças à admirável rede de estradas construída pelos romanos. Um serviço de correio atendia regularmente às fortificações isoladas, situadas nas fronteiras do Império, permitindo que as notícias circulassem sem dificuldade. Nas grandes cidades, como Alexandria ou Roma, podia-se desfrutar de todas as coisas agradáveis da vida.

Certamente nem todos os romanos eram privilegiados. Mediante uma taxa, as pessoas pobres viviam amontoadas em imóveis mal construídos de vários andares, que pareciam casernas. Em compensação, os notáveis moravam em casas e mansões suntuosamente mobiliadas e decoradas com as mais belas obras de arte gregas, com belos jardins e fontes. No inverno, eram aquecidas por meio de circulação de ar quente sob o piso, através de tijolos ocos. Os romanos mais ricos tinham uma ou várias propriedades de lazer, geralmente à beira do mar, cuja manutenção era confiada a escravos. Lá havia belas bibliotecas, com as obras de todos os grandes poetas gregos e latinos e adegas abastecidas com os melhores vinhos. Quando um romano se aborrecia em casa, ele ia ao mercado, ao tribunal ou aos banhos.

Os banhos, chamados termas, eram construções monumentais, luxuosamente decoradas, alimentadas de água por canalizações vindas das montanhas distantes. Nessas termas havia salas amplas, umas para banhos quentes ou frios, ou para banhos de vapor, e outras para atividades esportivas. Os vestígios dessas admiráveis instalações termais existem ainda hoje. As altas abóbodas sustentadas por pilares de mármore de todas as cores e as piscinas revestidas com as mais raras pedras nos fazem pensar num palácio das mil e uma noites.

Terma na Villa Adriana, Tívoli, Itália


Os teatros eram maiores e mais impressionantes ainda. O maior teatro de Roma, o Coliseu, tinha capacidade para acolher 50.000 espectadores. [...] Nesse teatro realizavam-se lutas de gladiadores corpo a corpo ou contra as feras. [...] As arquibancadas do Coliseu, em forma de elipse, elevando-se quase verticalmente, davam a impressão de um enorme funil. [...] O imperador sentava-se na primeira fila, no camarote de honra protegido do sol por um toldo, e dava o sinal para se iniciarem as lutas deixando cair um lenço na arena. Os gladiadores vinham então apresentar-se a ele e gritavam: “Viva o imperador! Os que vão morrer te saúdam!”

Anfiteatro romano em Bordeaux, França


Não pense que os imperadores não faziam mais nada além de passar a vida no teatro nem que eram todos terríveis sanguinários que se compraziam, como Nero, no vício e na comilança. A manutenção da paz no Império ocupava grande parte de seu tempo. Além das fronteiras viviam por toda parte povos “bárbaros” e belicosos, que vinham constantemente pilhar as ricas províncias romanas. Ao norte, do outro lado do Danúbio e do Reno, viviam os germanos. [...] César já tinha lutado contra eles por ocasião da conquista da Gália. [...] O país dos germanos, que hoje é a Alemanha, era então coberto de florestas e de terras pantanosas, nas quais os romanos frequentemente se perdiam. [...] [Os germanos] eram camponeses, tal como os romanos tinham sido em outros tempos. Viviam em casas isoladas, construídas de toras de madeira.

Muitos romanos eruditos escreveram sobre os romanos. Destacavam seu estilo de vida extremamente despojado, seus costumes ao mesmo tempo elementares e inflexíveis, seu amor pelo combate e sua fidelidade ao chefe de sua tribo. Os pensadores romanos gostavam de se basear nesses testemunhos para comparar, para seus compatriotas, o modo de vida simples, sadio e natural dos germanos em suas florestas com seu próprio modo de vida, cujo excesso de refinamento havia levado a um relaxamento dos costumes.

Os germanos eram guerreiros temíveis. Sob o reinado de Augusto, os romanos já tinham tido uma cruel experiência com eles. Naquele tempo, a tribo germânica dos queruscos tinha um chefe chamado Armínio, ou Hermann. Ele havia crescido em Roma e conhecia bem a estratégia romana. Assim, conseguiu deter e aniquilar uma legião que atravessava a floresta de Teutoburgo. A partir de então, os romanos nunca mais ousaram passar por aquela região. De fato, para eles era mais importante proteger o Império das invasões dos germanos e, desde o primeiro século depois de Cristo [...], passaram a erguer fortificações, chamadas de limes, ao longo das fronteiras que iam do Reno ao Danúbio. Essas fortificações eram paliçadas ladeadas por fossos e com torres de vigia de intervalo em intervalo. Os germanos tinham uma característica particular. Em vez de permanecerem sedentários, cultivando suas terras tranquilamente, eles estavam sempre se deslocando. Carregando mulheres e crianças em carroças puxadas por bois, essas populações nômades mudavam constantemente de local de residência, em busca de outras terras, para caçar ou para cultivar.

Torre de vigia em um limes romano, Alemanha


Os romanos, então, eram obrigados a manter tropas na fronteira permanentemente, para garantir a segurança do Império. Essas tropas, dispostas ao longo do Reno e do Danúbio, eram constituídas por homens provenientes de todas as províncias romanas. Egípcios, por exemplo, estavam baseados não muito longe de Viena, na Áustria, e até tinham construído um templo à margem do rio Danúbio, dedicado à sua deusa Ísis. [...] Todos os tipos de diferentes cultos eram celebrados ao longo dessa fronteira, como a Mitra, deus persa do Sol, ou logo o culto ao deus único e invisível dos cristãos. A vida ao longo do limes não era muito diferente da que se levava em Roma. Ainda hoje encontram-se teatros e termas romanas na Alemanha e na Áustria [...], na França [...], na Inglaterra [...], e também mansões para os funcionários imperiais e casernas para os soldados. Muitos desses soldados compravam uma propriedade nas redondezas, casavam-se com uma autóctone e se instalavam com ela fora do acampamento. [...]

As tropas de Trajano atravessaram o Danúbio e avançaram mais, até as atuais Hungria e Romênia, para fazer daquelas terras novas províncias romanas, mas também para aumentar a segurança do Império. Essa região na época se chamava Dácia, por causa de sua tribo, os dácios. Depois que foi conquistada e sua população passou a falar o latim, a Dácia passou a ser chamada Romênia. Trajano não se limitou a partir em campanhas. Ofereceu a Roma novas construções e novos palácios. Mandou devastar colinas inteiras para aumentar o espaço da cidade e permitir a criação de um imenso fórum. Contratou um arquiteto grego, que naquela praça enorme construiu templos, lojas, pórticos, anfiteatros espaçosos que serviam como salas de reunião, e muitos outros monumentos. Ainda hoje é possível ver seus vestígios em Roma.

Os imperadores que sucederam Trajano também se preocuparam com a segurança do Império e com a vigilância de suas fronteiras. O mais atento a isso talvez tenha sido Marco Aurélio, que reinou de 161 até 180 d.C. Ele passou grande parte do tempo de seu reinado nas guarnições à margem do rio Danúbio [...].

[...]

Ao longo do século III d.C., a confusão chegou ao auge. No Império Romano, quase só havia escravos ou tropas estrangeiras que não se entendiam uns aos outros. Os camponeses das províncias já não pagavam seus tributos e se rebelavam contra seus proprietários. Naqueles tempos de terrível miséria, agravada por epidemias de peste e pela insegurança cada vez maior devida à ladroeira, muita gente encontrava consolo nas palavras daquele que tinha trazido a boa nova, transmitida pelo Evangelho. Cada vez mais homens livres e escravos se convertiam ao cristianismo e se recusavam a se sacrificar pelo imperador.

No auge da crise, um homem chamado Diocleciano, filho de família pobre, conseguiu com muita luta o título de imperador. Ele tomou o poder em 284 d.C. e tentou recompor o Estado, então completamente desmantelado. Por causa da fome que se espalhava por toda parte, ele impôs uma limitação de preços a todos os produtos de alimentação. Reconheceu que não era possível governar o Império a partir de um só lugar. Designou então quatro cidades, às quais deu o título de capitais do Império, e nomeou quatro subimperadores, um para cada uma delas. Para devolver o respeito ao título de imperador, exigiu que as pessoas da corte e os funcionários se submetessem a uma etiqueta rigorosa e que usassem trajes ricamente bordados e confeccionados com os mais belos tecidos. Mas não gostava dos cristãos, sempre tão rebeldes, e passou a persegui-los impiedosamente em todo o Império. Essas perseguições violentas foram as últimas. [...]

De fato, seu sucessor, o imperador Constantino, deixou de perseguir os cristãos. [...]

Para dirigir o Império, Constantino não se instalou em Roma. As ameaças à fronteira vinham principalmente do Leste. Os mais agressivos eram os persas, que novamente tinham adquirido muito poder. Constantino escolheu então para sua residência a antiga colônia grega de Bizâncio, às margens do mar Negro, e lhe deu o nome: Constantinopla (a nova Roma).

Pouco tempo depois – a partir de 395 d.C. -, o Império já não tinha só duas capitais, Roma e Constantinopla. Também tinha dois Estados: o Império do Ocidente, que incluía a Itália, a Gália, a Espanha, a África do Norte, em que se falava latim, e o Império do Oriente, incluindo o Egito, a Palestina, a Ásia Menor, a Grécia e a Macedônia, em que se falava o grego. A partir de 380 d.C., nos dois Impérios o cristianismo foi instituído como religião de Estado. Os bispos e arcebispos tornaram-se altas personalidades, exercendo grande influência, inclusive nos assuntos de Estado. Os cristãos já não precisavam se encontrar às escondidas nas galerias subterrâneas. Seus locais de culto passaram a ser grandes igrejas, magnificamente decoradas. Quanto à cruz, símbolo da redenção das culpas e da libertação de todo sofrimento, ela também se tornou o símbolo guerreiro das legiões.

GOMBRICH, Ernest Hans.  Breve história do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 121-128.

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