Emblema solar de Ahura Mazda.
Ca. VI século a.C. Susa, Pérsia
A religião dos persas, tal como foi ensinada por Zoroastro, não permaneceu por muito tempo em seu estado original. Foi corrompida principalmente pela persistência de superstições primitivas, pela magia e pela ambição do clero. Quanto mais a religião se estendia, tanto mais nela se enxertavam essas relíquias do barbarismo. Com o passar dos anos, a influência de crenças de outras terras, particularmente as dos caldeus, determinou novas modificações. O resultado final foi o desenvolvimento de uma poderosa síntese na qual o primitivo sacerdotalismo, o messianismo e o dualismo dos persas se combinavam com o pessimismo e o fatalismo dos neobabilônios.
Dessa síntese emergiu, aos poucos, uma profusão de cultos, semelhantes em seus dogmas básicos, mas concedendo a eles valores diferentes. O mais antigo dos cultos era o mitraísmo, nome que se deriva de Mitra, o principal lugar-tenente de Mazda na luta contra as forças do mal. Mitra, a princípio apenas uma divindade menor da religião zoroástrica, encontrou finalmente agasalhado no coração de muitos persas como deus mais merecedor de adoração. A razão dessa mudança foi, provavelmente, a auréola emocional que cercava os acidentes de sua vida. Acreditava-se que nascera num rochedo, em presença de um pequeno grupo de pastores, que lhe trouxeram presentes em sinal de reverência pela sua grande missão na terra. Passou então a sujeitar todos os seres vivos que encontrava, conquistando e tornando úteis ao homem muitos deles. Para melhor desempenhar essa missão, fez um pacto com o sol, obtendo calor e luz para que as plantações pudessem florescer. O mais importante de seus feitos foi, contudo, a captura do touro divino. Agarrando o animal pelos chifres, lutou desesperadamente até forçá-lo a entrar numa caverna, onde, em obediência a uma ordem do sol, o matou. Da carne e do sangue do touro provieram todas as espécies de ervas, grãos e outras plantas valiosas para o homem. Mal esses feitos foram realizados, Ahriman provocou uma seca na terra, mas Mitra enfiou a sua lança numa rocha e as águas dela borbulharam. Em seguida o deus do mal mandou um dilúvio, mas Mitra mandou construir uma arca para permitir a salvação de um homem com os seus rebanhos. Depois de terminados os seus trabalhos, Mitra participou de um festim sagrado com o sol e subiu aos céus. No devido tempo voltará e dará a todos os crentes a imortalidade.
Mitra e o touro. Afresco do Templo de Mitra, Marino, Itália, século II d.C. Artista
desconhecido
O ritual do mitraísmo era complicado e significativo. Incluía uma complexa cerimônia de iniciação em sete estágios ou graus, o último dos quais firmava uma amizade mística com o deus. Longas provas de abnegação e mortificação da carne constituíam complementos necessários ao processo de iniciação. A admissão à completa participação no culto habilitava uma pessoa a participar dos sacramentos, sendo o mais importante o batismo e uma refeição sagrado de pão, água e, possivelmente, vinho. Outras observâncias incluíam a purificação lustral (ablução cerimonial com água santificada), a queima de incenso, os cânticos sagrados e a guarda dos dias santos. Destes últimos, eram exemplos típicos o domingo e o dia vinte e cinco de dezembro. Imitando a religião astral dos caldeus, cada dia da semana era dedicado a um corpo celeste. Uma vez que o sol, como fonte de luz e fiel aliado de Mitra, era o mais importante desses corpos, seu dia era, naturalmente, o mais sagrado. O dia vinte e cinco de dezembro possuía, também, significação solar: sendo a data aproximada do solstício do inverno, marcava a volta do sol de sua longa viagem ao sul do Equador. Era, em certo sentido, o "dia do nascimento do sol", uma vez que assinalava a renovação de suas forças vivificadoras para benefício do homem.
Não se sabe exatamente quando a adoração de Mitra se transformou num culto definido, mas sem dúvida não foi depois do século IV a.C. Seus característicos se estabeleceram firmemente durante o período de fermentação social que se seguiu ao colapso do império de Alexandre, e sua expansão nessa época foi muitíssimo rápida. No último século a.C. foi introduzido em Roma, embora tivesse pequena importância na própria Itália até o ano 100 d.C. Fazia conversos principalmente nas classes mais baixas - soldados, estrangeiros e escravos. Finalmente, atingiu a situação de uma das mais populares religiões do Império, tornando-se o principal concorrente do cristianismo e do próprio velho paganismo romano. Depois de 275, no entanto, sua força decaiu rapidamente. É impossível avaliar a influência que esse extraordinário culto exerceu. Não é difícil perceber sua semelhança superficial com o cristianismo, mas certamente isso não quer dizer que os dois fossem idênticos, ou que um fosse derivação do outro. Não obstante, é provável que o cristianismo, o mais jovem dos dois rivais, tenha tomado de empréstimo um bom número dos aspectos externos do mitraísmo, conservando, ao mesmo tempo, virtualmente intata a sua filosofia essencial.
Um dos principais sucessores do mitraísmo na transmissão da herança persa foi o maniqueísmo, fundado por Mani, um sacerdote de origem ilustre de Ecbátana, aproximadamente em 250 d.C. Como Zoroastro, achava que sua missão na terra era reformar a religião dominante, mas obteve pequena simpatia em seu próprio país e teve que se contentar com aventuras missionárias na Índia e na China Ocidental. Mais ou menos em 276, foi condenado e crucificado pelos seus próprios rivais persas. Depois da morte de Mani, os ensinamentos deste foram levados por seus discípulos praticamente a todos os países da Ásia Ocidental e, por fim, à Itália, mais ou menos em 330. Grande número de maniqueus ocidentais, inclusive o grande Agostinho, acabaram por se tornar cristãos.
Folha de um maniqueísta. Khocho, ca. VIII-IX século d.C. Artista desconhecido
De todos os ensinamentos do zoroastrismo, o que causara a mais profunda impressão na mente de Mani fora o dualismo. Era, por conseguinte, natural que se tornasse a doutrina central da nova fé. Mas Mani deu a essa doutrina interpretação mais larga do que tivera nas religiões precedentes. Concebeu não simplesmente duas divindades empenhadas numa luta inexorável pela supremacia, mas todo um universo dividido em dois reinos, sendo um a antítese do outro: um, o reino do espírito dominado por um Deus eternamente bom; outro, o reino da matéria sob o domínio de Satã. Somente substâncias "espirituais" como o fogo, a luz e as almas dos homens eram criadas por Deus. Tinham sua origem em Satã a escuridão, o pecado, o desejo e todas as coisas corporais e materiais. A própria natureza humana era má, pois os primeiros pais da raça receberam seus corpos físicos do rei das trevas.
As inferências morais desse dualismo rigoroso eram demasiado evidentes. Uma vez que tudo quanto se relacionasse com a sensualidade e o desejo era trabalho de Satã, o homem devia esforçar-se por se libertar o mais completamente possível da escravidão de sua natureza física. Devia refrear todos os prazeres dos sentidos, abster-se de comer carne, de beber vinho e de satisfazer o desejo sexual. Até o casamento era proibido, pois levaria à geração de novos corpos físicos para povoar o reino de Satã. Além disso, o homem dominaria a carne por meio de jejuns prolongados e penitências corporais. Reconhecendo que essa norma de austeridade seria muito dura para mortais comuns, Mani dividiu a raça humana em "perfeitos" e "seculares". Somente os primeiros eram obrigados a submeter-se à norma completa como um ideal que todos deviam almejar. À segunda categoria cumpria somente evitar a idolatria, a avareza, a fornicação, a falsidade e a ingestão de carne. A fim de ajudar os filhos dos homens na luta contra o poder das trevas, Deus enviava, de tempos em tempos, profetas e redentores a fim de confortá-los e inspirá-los. Noé, Abraão, Zoroastro e Paulo eram enumerados entre esses emissários divinos, mas o último e maior de todos era Mani.
É muito difícil estimar a influência do maniqueísmo, mas sem dúvida ela foi considerável. Pessoas de todas as classes do império romano, incluindo alguns membros do clero católico, adotaram suas doutrinas. Na sua forma cristianizada, tornou-se uma das seitas principais da igreja primitiva e forneceu a base essencial da heresia albigense, ainda nos séculos XII e XIII. Inspirou extravagantes especulações cristãs em torno do dualismo entre Deus e o diabo e entre o espírito e a matéria. Não somente contribuiu para o ascetismo cristão mas também fortaleceu as doutrinas do pecado original e da depravação do homem, tais como as ensinaram alguns teólogos. Foi, finalmente, a grande fonte da famosa dicotomia dos padrões éticos estabelecida por Santo Agostinho e outros Padres da Igreja: 1) um padrão de perfeição para poucos (os monges e as freiras), que se retirariam do mundo e levariam vida santa para exemplo dos demais; e 2) um padrão socialmente viável para os cristãos comuns.
O terceiro culto mais importante, que se desenvolveu como legado da religião persa, foi o gnosticismo (do grego gnosis, que significa conhecimento). O nome do seu fundador é desconhecido, bem assim como a data da sua origem, mas certamente existia já no primeiro século da nossa era. Atingiu o auge da popularidade na última metade do segundo século. Ainda que granjeasse alguns seguidores na Itália, sua influência se limitou sobretudo ao Oriente Próximo.
O misticismo era o característico que mais distinguia dos outros este culto. Os gnósticos negavam que as verdades da religião pudessem ser descobertas pela razão ou que se pudessem tornar inteligíveis. Consideravam-se como os detentores exclusivos de uma secreta sabedoria espiritual revelada por Deus, sabedoria essa de absoluta importância como guia da fé e da conduta. Suas observâncias religiosas eram também altamente esotéricas, isto é, tinham um significado oculto conhecido unicamente pelos iniciados. Os sacramentos em grande profusão, batismos inumeráveis, ritos místicos e o uso de fórmulas e números sagrados são os melhores exemplos desses ritos.
Foi enorme a influência conjunta desses vários tipos de religião persa. Muitos deles foram lançados numa época de condições sociais e políticas particularmente favoráveis à sua expansão. O fim do império de Alexandre, mais ou menos em 300 a.C., inaugurou na história do mundo antigo um período singular. Foram derrubadas as barreiras internacionais, houve uma extensa migração e caldeamento de povos, e o colapso da antiga ordem social despertou profunda desilusão e um vago anseio de salvação individual. A atenção dos homens se centralizou, como nunca mais acontecera desde a queda do Egito, nas compensações da vida futura. Em tal terreno as religiões do tipo descrito estavam destinadas a medrar como erva nova. Sendo sobrenaturais, místicas e messiânicas, ofereciam na irrealidade que buscavam os homens o verdadeiro refúgio de um mundo de ansiedade e confusão.
A herança deixada pelos persas, ainda que não tenha sido exclusivamente religiosa, continha poucos elementos de natureza secular. A forma de governo característica desse povo foi adotada pelos monarcas romanos de época avançada, não no seu aspecto puramente político, mas no seu caráter de despotismo de direito divino. Quando imperadores como Diocleciano e Constantino I invocaram a autoridade divina como base do seu absolutismo e exigiam que os súditos se prostrassem na sua presença, estavam, em realidade, identificando o estado com a religião como os persas tinham feito na época de Dario. São também discerníveis traços da influência persa em certos filósofos helenistas, mas ainda aqui essa influência foi essencialmente religiosa, pois se limitou quase inteiramente às teorias místicas dos neoplatônicos e dos seus aliados filosóficos.
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: Do homem das cavernas até a bomba atômica. V. 1. Porto Alegre: Globo, 1964. p. 106-110.
NOTA: O texto "A herança mística e extraterrena da Pérsia" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.
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