"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A invasão dos "Povos do Mar" e as tribos de Israel

Filisteus. Templo de Horemheb, Egito

A tormenta que varreu o império hitita parece ter sido repentina. O único indício precursor é, aos nossos olhos, a persistência, sob o reinado de Arnuwanda III, da coligação entre Madduwata, os aqueus e o Arzawa. Todo o Oeste anatólico achava-se unido contra Hattusa, e alguns dos povos coligados, particularmente aqueus e lícios, voltariam a ser encontrados entre os invasores, que então intentavam penetrar no Egito. Meneptah logrou detê-los e enviou socorros em trigo aos hititas, com o objetivo talvez de os sustentar em seu esforço contra o inimigo comum. De qualquer modo, na inscrição do ano 5 (c. 1230), que celebra suas vitórias na Palestina, o faraó assinala que "Hatti está pacificado".

Morto Arnuwanda, sem filhos, foi sem jovem irmão Suppiluliuma (II) quem subiu ao trono. Teria escolhido o nome como um símbolo de união, para galvanizar as energias? Impossível não pensar no último rei da Assíria, acossado pelos medas em 611, que ostentará também um nome simbólico, Assur-whallit. Mas aqui cessa a comparação. Entre os hititas, nada permite entrever um enfraquecimento. O tratado com o rei de Karkemish, Talmi-Teshub, foi renovado normalmente; Ammurapi de Ugarit permanecia um aliado fiel: uma vitória naval garantiu aos hititas a posse de Chipre; e Suppiluliuma II teve, inclusive, a oportunidade de intervir militarmente no alto Eufrates, contra a Assíria. A seguir, silêncio definitivo. A quem imputá-lo?


Povos do mar. Templo mortuário de Ramsés III, Egito

As fontes egípcias mencionam certos "povos do mar", que assaltaram o Delta e que foram contidos com muita dificuldade por Ramsés III, cerca de 1190. Entre esses povos, alguns nomes são idênticos aos enumerados pelas inscrições de Merneptah, em particular os shardanas, aqueus (aqayawas) e turush (que alguns pretendem identificar com os tirsênios). Desconheciam-se até então os danuna, provavelmente oriundos da Cilícia, e os filisteus, que, segundo a tradição hebraica (Amós, 9, 7), vinham de Creta. Visivelmente, toda a bacia do Mediterrâneo oriental estava em efervescência, e nesse fato se vê o efeito das invasões dóricas, empurrando na sua frente as antigas populações do Egeu.

Deve-se atribuir a estas últimas a destruição do império hitita? Nada prova que os habitantes do Arzawa ou os ahhiyawa houvessem tomado a rota de Hattusa; parecem ter-se dirigido para a Síria e o Egito. Os principais responsáveis pela catástrofe foram antes invasores da Europa: o planalto anatólico seria ocupado por frígios vindos da Trácia, e por uma população a eles aparentada, que os assírios chamariam de mushki, os moskhoi de Heródoto. E como duvidar de que os gasga houvessem tirado proveito da situação para repetir essas proezas anteriores? Com efeito, tornariam a ser encontrados no alto Eufrates; os mushki instalar-se-ão em Comagena, enquanto pequenos reinos hititas, bem ou mal, irão subsistir no Tauro e na Síria do Norte. A maior parte das regiões sírias foi devastada. Cilícia, Ugarit, Karkemish, Amurru arderam uma após outra. Chipre não foi poupada. Finalmente, foi atingida a Palestina. Sobre ela possuímos mais pormenores, porque os recém-chegados, os filisteus, cujo nome seria dado à região, chocavam-se com as tribos israelitas há pouco instaladas no interior do território, e com as quais entrariam numa luta sem quartel.

O estabelecimento dos israelitas na terra de Canaã é anterior à campanha de Meneptah no Hurri (c. 1230), visto que o faraó se vangloria, na inscrição acima citada, de haver destruído este povo: "Israel está desolado e sua raça já não existe", primeira em data de uma longa série de vãs afirmativas. A tradição israelita conservou a lembrança de um período de opressão no Egito, seguido de um êxodo e de uma permanência de quarenta anos nos desertos do Sinai. O número talvez só possua um valor simbólico, mas procurou-se identificar os faraós opressores que utilizaram os israelitas na construção das cidades de Píton e Ramsés. Poderia tratar-se de Sethi I e Ramsés II, que empreenderam grandes obras em Avaris. É possível que o êxodo tivesse ocorrido sob o reinado de Ramsés II, em meados do século XIII.

Ainda que não se possa aceitar todos os pormenores dos relatos bíblicos, redigidos somente a partir dos séculos X-IX, a história de Israel seria incompreensível sem levar em conta o papel de Moisés. Sobre este ponto, a tradição é unânime: uma personalidade forte imprimiu decisiva orientação às crenças e ao destino desse povo; igualmente unânime em conservar o nome que lhe dá. Os efeitos da ação de Moisés, entretanto, só podem ser apreciados à luz dos primeiros textos bíblicos, posteriores à fixação em Canaã, vale dizer, fora dos limites cronológicos aqui considerados. Por conseguinte, as instituições políticas e religiosas das tribos israelitas serão examinadas simultaneamente com a história dos "juízes". Transpô-las, pura e simplesmente, para a época da penetração em Canaã, seria arriscar-se ao anacronismo, razão pela qual nos restringiremos ao fato em si da conquista.

Acerca desta, divergem as tradições: enquanto o livro de Josué fala de uma súbita e sangrenta irrupção de todo Israel, a partir da região de Jericó, o livro dos Juízes menciona infiltrações de tribos isoladas. Não há motivo para rejeitar uma tradição em proveito de outra. Arqueologicamente se comprova que certo número de cidades palestinas, ocupadas pelos israelitas nessa época, sofreram destruição violenta, e que o movimento deve ter sido de certa amplitude. É evidente, por outro lado, que o movimento não se operou de uma só vez, e que a penetração assumiu formas diversas.

Não é certo que o conjunto das populações que iriam constituir Israel houvesse participado do êxodo. Vários indícios levam a crer que grupos afins se encontravam já na Palestina central, mais precisamente, na região de Siquém, poupada da destruição, e que foram assimilados pelos recém-vindos. Estes, de resto, não formavam um grupo homogêneo. O Levítico (24, 10) cita, entre os fugitivos, o filho de um egípcio com uma israelita; madianitas uniram-se a eles durante a caminhada (Núm. 10, 29-32): e quenizitas, como Caleb, constituíam um clã edomita. O grupo principal, ao ver a rota do Sul palestino barrada pelos amalecitas, contornou os reinos de Edom e Moab, defendidos por portos fortificados, e se estabeleceu a leste do Jordão, entre Arnon e Jabok. Entraram na Palestina pela região de Jericó. Outros grupos, como os quenitas, quenezitas e jeramelitas, infiltraram-se diretamente pelo Neguev.

O meio no qual penetraram também era heterogêneo. A terra de Canaã constituía-se num mosaico de pequenas cidades-Estados, cujas divisão e fragilidade tinham sido cuidadosamente mantidas pelos senhores egípcios. O desaparecimento do domínio egípcio, no final do novo Império, só reforçou a fragmentação política. A leste do Jordão encontravam-se os dois reinos de Edom e Moab, amonitas em vias de sedentarização e, mais ao norte, dois Estados amoritas, sobre os quais não possuímos informações seguras. Todas essas populações falavam idiomas semíticos. Mas, além delas, a Bíblia menciona horitas e hivitas, habitualmente identificados aos hurritas e hititas, bem como jebusitas, perizitas e girgashitas, dos quais nada sabemos. É possível, como julga R. de Vaux, que termos como horitas, hititas e amoritas não indiquem, na verdade, qualquer estabelecimento de povos com esses nomes; seriam simples empréstimos tardios à nomenclatura geográfica, aliás inexata, dos países vizinhos. Seja como for, do ponto de vista cultural, todas estas populações deviam estar fortemente "canaanizadas".

Um fator preservou as tribos de Israel da desintegração, ou da dissolução no meio ambiente que as cercava: sua distribuição geográfica. Os israelitas eram nômades, capazes de realizar incursões e tomar cidades de surpresa, mas careciam de uma organização militar eficiente. Não tinham carros de combate, nem máquinas de cerco. Não podiam aventurar-se nas planícies, onde seriam completamente destroçados pelos carros dos adversários, sendo-lhes difícil apossar-se das cidades cananéias defendidas por sólidas muralhas. Daí que, afora alguns casos isolados, como Jericó, as conquistas de cidades fossem raras. Os israelitas infiltraram-se nas regiões montanhosas do interior, relativamente pouco povoadas, e disseminaram-se por territórios afastados, separados por núcleos populacionais não-israelitas. Graças a isso, evitaram sua assimilação pelos cananeus.

Só em fins do século XI os israelitas chocaram-se com os filisteus, quando estes, visando garantir a retaguarda e perceber contribuições, pretenderam estender seu domínio ao interior. Ao tempo em que se instalaram na costa, os filisteus haviam-se contentado com dividir as terras em pequenos principados, com apoio em pontos fortificados: Gaza, Áscalon, Asdod, Ekron e Gath. Herdeiros dos cananeus, que haviam repelido, distinguiram-se deles pelo hábito de ações coordenadas, por meio das quais atingiram um poderio bem mais considerável. Tal fator pesaria duramente sobre o futuro destino dos israelitas, acelerando sua transformação política e religiosa.

A Palestina é a única das regiões atingidas pela invasão do século XIII acerca da qual existem algumas informações precisas. Ignora-se a situação da Síria na mesma época, mas pode-se avaliar seu estado de desordem pela agitação intensa que então reinava entre as tribos aramaicas. O fim das estruturas políticas da época amarniana, ou talvez um afluxo demográfico contido por tempo excessivo, provocaram um êxodo maciço em direção à Mesopotâmia. As duas pressões, distintas na origem, conjugaram-se nos efeitos, provocando um movimento de inigualável amplitude, que atingiu as margens do Golfo Pérsico. Em todo lado surgiram reinos arameus. A formação do Estado de Israel é apenas um caso particular inserido nesse processo global, graças à derrocada das grandes potências. Os velhos Estados mesopotâmicos dele sairiam transformados, para se lançar em empreendimentos de dominação universal.

GARELLI, Paul. O Oriente Próximo asiático: das origens às invasões dos povos do mar. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1982. p. 211-215.


NOTA: O texto "A invasão dos "Povos do Mar" e as tribos de Israel" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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