Hermann
e Thusnelda,
Johann Heinrich Wilhelm Tischbein
As migrações bárbaras, sem dúvida alguma, favoreceram a reaparição de antigas heresias, muitas vezes latentes nas populações rurais. Isso ocorre na África e, sobretudo, na Espanha [...].
Os godos, antes de seu
estabelecimento no Ocidente, haviam sido convertidos ao cristianismo. Porém
conduzidos por Ulfila, um dos seus que estivera em Constantinopla quando do
triunfo do arianismo, tornaram-se arianos. Ulfila foi consagrado bispo em 341
e, por volta do fim do século, as conversões maciças multiplicaram-se entre os
godos. A fé ariana propagou-se a seguir entre os vândalos, borgúndios, suevos
e, mais tarde, entre os lombardos. O antagonismo religioso foi, constantemente,
um obstáculo à fusão entre germanos e romanos: igrejas separadas, proibição de
casamentos, conversões difíceis. Na África, sérias perseguições provocadas
certamente também pelo desejo de exterminar a aristocracia romana e a
autoridade dos bispos, expulsam os cristãos de suas igrejas, forçam comunidades
inteiras ao exílio na Espanha. Outros povos, é verdade, foram mais tolerantes,
porém o problema ariano retardou em todo lugar a unidade e ameaçou a paz
interior.
[...]
Muito mais difícil e longa foi a
evangelização dos pagãos. Na Gália e no norte da Espanha, presencia-se, no século
V, um vivo reflorescimento de antigas superstições e idolatrias. A chegada dos
germanos, dos francos principalmente, reforça efetivamente esse paganismo, que
havia, outrora, resistido às tentativas dos romanos e dos bispos. Sem dúvida, a
conversão de reis e chefes foi rápida e espetacular. [...] De fato, no século
VI ainda, se as cidades contam com sólidas comunidades cristãs reunidas em
torno de seus bispos, a massa da população rural, na Gália, e mais ainda na
Germânia além do Reno, permanece ligada às suas antigas crenças. A mesma
palavra, paganus, designa, então o
camponês e o pagão.
Germano com pele de urso polar, Hermann Katsch
Dessa ligação às superstições e
ao paganismo dão testemunhos a literatura da época [...], as práticas e o
mobiliário funerário estudado por E. Salin. Os homens carregam inúmeros
amuletos, presas de javalis, dentes de ursos, medalhões de resina ou de âmbar. Alimentam
fogos purificadores sobre os túmulos, onde são celebradas refeições rituais. Levam
oferendas aos deuses das fontes, dos lagos e das florestas; outros adoram o Sol
e o fogo, cujos símbolos (rodas estilizadas, monstros contorcidos) enfeitam as
pedras e os objetos familiares; outros, na Germânia, erguem ainda templos às
divindades do antigo panteão romano, a Diana, por exemplo.
Nos primeiros tempos bárbaros, o
bispo permanece como o único senhor da cidade, encarna a única força espiritual
do momento e, muitas vezes, se identifica mesmo com a “nação” romana. Nessa época
conturbada, a escolha dos cristãos recai freqüentemente sobre um leigo, pio e
poderoso, já acostumado ao andamento dos assuntos públicos, Membro da
aristocracia, rico proprietário, administrador experiente, o bispo protege a
cidade contra pilhagens e desordens; assegura o abastecimento e controla o
mercado, constrói e mantém hospitais e escolas. Perto da catedral faz trabalhar
um grupo de pequenos artesãos e lojistas.
Os campos, porém, permanecem
ainda, no século VI, pouco influenciados pela vida cristã. As paróquias são
pouco numerosas e isoladas [...].
As conquistas longínquas do
cristianismo, entretanto, na Gália do Norte e na Germânia, foram principalmente
obra de monges missionários ligados, em sua maioria, a duas grandes famílias
espirituais, por muito tempo opostas.
Psiquê, Évariste Vital Luminais
A Irlanda, situada à margem do
mundo romano e, posteriormente da Bretanha anglo-saxônica, conserva seus
antigos costumes, suas estruturas políticas e sociais bem particularizadas:
grandes famílias tribais dominadas por chefes, reis, submissos eles próprios a
reis mais poderosos. A evangelização da região foi obra de missionários:
sacerdotes enviados pelo papa (em 431 por Celestino I) e, sobretudo, Patrício
[...]. A nova Igreja, rapidamente toda-poderosa, organiza-se principalmente em
volta de mosteiros que, na ausência de cidades e bispos, exercem toda a autoridade
espiritual sobre as zonas rurais, convertendo-se nos únicos centros de vida
religiosa e intelectual.
[...]
Os monges irlandeses certamente
devem às tradições aventureiras dos escotos (pirataria, expedições nas costas
da Bretanha e da Escócia) seu gosto por viagens longínquas e a vida errante;
toda uma literatura épica e popular dá testemunho disso. A peregrinatio, o desejo de isolamento, virtudes fundamentais,
explicam os sítios escarpados dos mosteiros, erguidos sobre ilhotas rochosas ou
montanhas abruptas e as longas migrações solitárias [...].
Na Gália do Sul, entretanto, os
primeiros mosteiros foram, de início, fundados nas costas da Provença, onde se
exerciam mais intensamente as influências do Oriente [...].
[...]
A atividade missionária foi um
dos aspectos essenciais dessa obra de restauração. Permitiu dessa forma reduzir
os particularismos, a autonomia e o poder da Igreja da Irlanda. Em 597, Gregório
enviou à Inglaterra, para evangelizar os saxões, Agostinho, abade do mosteiro
que fundara em Roma no monte Coelio. Agostinho consegue rapidamente converter o
rei Etelfrido e organiza prontamente a Igreja da Inglaterra: primado de Cantuária,
províncias de Londres e York. Esta cristianização, entretanto, é superficial e
os sucessores de Agostinho tiveram que lutar por muito tempo contra os
reaparecimentos do paganismo. Somente por volta do fim do século VII, a maior
parte da Inglaterra parece cristã. No mais, o estabelecimento da Igreja romana
provoca um sensível descontentamento entre os monges irlandeses, que já haviam
instalado mosteiros e centros de evangelização na ilha. A rivalidade entre as
duas igrejas agrava-se ainda devido ao apego dos irlandeses a seus usos
particulares: maneira da tonsura dos clérigos e fixação da festa da Páscoa. [...]
[...]
HEERS, Jacques. História medieval. São Paulo: Difel,
1974. p. 30-35.
NOTA: O texto "Civilização e vida espiritual nos Reinos Bárbaros do Ocidente III: A Igreja e a evangelização" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.
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