Ditadura militar: legalidade autoritária
Nove dias após depor um presidente democraticamente eleito pelos brasileiros, o governo militar anunciou, em seu primeiro Ato Institucional, que “a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”. Em nome “do interesse e da vontade da Nação”, a ditadura colocava o Direito contra a democracia, instituindo uma nova legalidade fundada no senso comum autoritário de que o povo não é capaz de governar. Esta relação entre senso comum e legalidade é fundamental para compreendermos as raízes e as conseqüências do autoritarismo e suas possibilidades de superação.
“Somos iguais perante a lei e
temos os mesmos direitos”. O Estado Constitucional de Direito possui duas
características: traduz a vontade da maioria, mas também limita seu poder,
garantindo a todos um conjunto de direitos fundamentais. Como produto do
processo democrático e do exercício da política, o direito tem legitimidade. A
legalidade democrática não é uma “imposição”, mas sim uma construção na qual
cada um é coautor da lei que está obrigado a obedecer. Ela dialoga com um senso
comum democrático no qual o cidadão se percebe como um entre iguais.
“Manda quem pode, obedece quem
tem juízo”. A legalidade da ditadura foi imposta por uma minoria, por meio da
força. Seu fundamento não são os acordos democráticos transformados em leis,
mas sim a capacidade repressiva. Essa legalidade relaciona-se com um senso
autoritário, articulado por setores sociais que se entendem diferenciados:
“elites” que se consideram superiores. Não se vêem como parte, mas à parte do
povo, do “cidadão comum”.
[...]
Mas como essa legalidade se
tornou eficiente?
“Ame-o ou deixe-o”. Numa
ditadura, o emprego da força é maior na medida em que o consenso é menor. O
Chile e a Argentina viveram golpes militares similares ao do Brasil, em 1973 e
1976, também “justificados” pela defesa da pátria contra a “ameaça comunista”.
Nossos vizinhos são exemplos do uso indiscriminado da força para a manutenção
da legalidade autoritária. Na Argentina a ditadura deixou 30 mil mortos e
desaparecidos, no Chile, 10 mil. Comparados aos números oficiais brasileiros,
que dão conta de 475 vítimas fatais, pode-se pensar que vivemos aqui uma
ditadura mais amena, uma “ditabranda”. Este argumento é falso.
No Chile e especialmente na
Argentina, a legalidade do regime autoritário sofreu maior resistência social.
No Brasil houve mais cooperação entre as instituições e o regime, especialmente
no sistema de Justiça. Enquanto nos países vizinhos os governos militares foram
contestados pelo Poder Judiciário, obrigando as ditaduras a aposentar e a
expulsar um grande número de membros da magistratura e do Ministério Público, e
a criar inúmeros expedientes e tribunais de exceção, no Brasil a Justiça
mostrou-se muito mais disposta a aplicar a legalidade do regime. Mas a escolha
de diferentes meios repressivos não significa que nossa ditadura não foi
violenta. Números oficiais da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
apontam que mais de 40 mil brasileiros foram vítimas de atos de exceção e que a
tortura foi praticada de maneira indiscriminada.
A concessão de poderes quase
ilimitados às forças de segurança, combinada com uma cultura de impunidade
derivada do senso comum autoritário, promoveu uma maior institucionalização da
violência. Uma das conseqüências é que práticas “clandestinas, como o seqüestro
de opositores, foram bem menos freqüentes no Brasil. Elas não foram
necessárias, pois o sistema de Justiça estava disponível, e isso teve impacto
no número de mortos e desaparecidos. De outro lado, o fim do regime não
resultou no fim das práticas repressivas que ele institucionalizou. As atuais
violações de direitos por forças de segurança, a criminalização de conflitos
sociais e a histórica impunidade dos indivíduos “diferenciados” são heranças da
legalidade assimétrica reforçada no período da ditadura. [...]
[...]
Mais que mudar leis, para
eliminar a legalidade autoritária é preciso produzir um senso comum
democrático. O Direito só será democratizado se reformas legais forem
acompanhadas por transformações culturais e de mentalidade. A chamada “justiça
de transição” articula mecanismos para esse fim. O Estado deve garantir o
direito à verdade, reparar as vítimas e apurar as violações, reconhecendo como
ilegais, na democracia, os atos validados pela legalidade autoritária. [...]
Daí a importância de políticas de memória
que exponham e questionem o legado autoritário. [...]
A impunidade dos crimes dos
agentes da repressão é uma ilustração da persistência de uma legalidade
autoritária e assimétrica: enquanto os perseguidos políticos foram
identificados, processados, punidos e então anistiados, os agentes da repressão
seguem intocados. Não são iguais perante a lei. A Corte Internacional de
Direitos Humanos considerou ilegal a anistia aos crimes contra os direitos
humanos, mas o senso comum autoritário que ainda predomina na Justiça
brasileira impede seu processamento doméstico.
Reformas institucionais também
ajudam a desarticular a legalidade autoritária. Numa democracia, as Forças
Armadas existem para defender os civis, e não para governá-los. Em 1999, o
governo transformou este senso comum democrático em legalidade, criando o
Ministério da Defesa e reforçando a cultura de comando civil sob as forças de
segurança. No plano simbólico, falta uma retratação pública das Forças Armadas
pelo golpe e pelas violações aos direitos humanos, colocando um ponto final
institucional nos discursos de legitimação da “revolução de 1964” .
Uma legalidade democrática
depende, por fim, da democratização da Justiça. Ela deve ser capaz de atender a
toda a sociedade, e não apenas às elites. [...]
Marcelo Torelly. “Direito versus democracia”. In: Revista de História da Biblioteca Nacional.
Ano 9 / Nº 103 / 2014. p. 26-29.
NOTA: O texto "Ditadura no Brasil: Direito versus democracia" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.
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