Ditadura militar: resistência
De todos os países latino-americanos que passaram pela experiência de uma ditadura militar nas últimas décadas, o Brasil se destaca no direito internacional por sua situação catastrófica.
Enquanto Argentina, Chile e
Uruguai passaram cada um à sua maneira, por processos profundos de julgamento
dos responsáveis por crimes contra a humanidade perpetrados por funcionários de
Estado, o Brasil brilha por nunca ter colocado um torturador no banco dos réus.
Enquanto vários países fizeram revisões de suas leis e instituições, o Brasil
conseguiu preservar algumas das mais brutais heranças jurídico-institucionais
da ditadura militar.
[...]
A tentativa de apagar aos poucos
a ditadura da história brasileira só pôde ocorrer porque os militares
procuraram, desde o início, criar uma forma renovada de totalitarismo. Ele
consistiu em não apelar para um típico regime na base da lei e da ordem, com
suspensão total de todas as liberdades individuais, bloqueio completo da
produção cultural, eliminação sistemática de todo e qualquer opositor e
anulação soberana da integralidade das estruturas político-partidárias. Daí a
impressão de que, comparada a países como Argentina e Chile, a ditadura
brasileira teria sido branda, inclusive com menos mortos e desaparecidos.
É verdade que em plena ditadura
era possível levar para casa discos com canções de protesto, comprar livros de
Karl Marx nas bancas e nas livrarias, votar no partido de oposição. No entanto,
devemos lembrar que o totalitarismo está ligado à generalização de situações de
exceção nas quais a lei pode ser, a qualquer momento, suspensa, pois há sempre
uma segunda lei não dita que pode interferir e se fazer sentir. Posso comprar
livros de Marx e levá-los para casa, mas, a qualquer momento, por razões as
mais diversas possíveis, posso ser enquadrado por isto e processado pela Lei de
Segurança Nacional. Generaliza-se uma situação na qual nunca sei com clareza se
estou dentro ou fora da lei, cabendo à atitude discricionária do poder decidir
minha real posição. [...] Aceita-se a existência de um Congresso Nacional com
deputados de oposição, mas, caso suas decisões desagradem, está sujeito a ser
fechado por tempo indeterminado. A legalidade é reduzida à condição de
aparência.
[...] Dando a impressão de
legalidade e apoiando-se em uma vergonhosa lei da anistia que vai na contramão
do direito internacional – que entende serem imprescritíveis os crimes contra a
humanidade, e objetos de uma jurisdição que se sobrepõe às leis nacionais –
permitiu-se que todas as instituições escapassem de exigências e depuração.
Para ficar em um só exemplo, as Polícias Militares conseguiram a proeza de não
afastar de seus quadros a maioria dos envolvidos em tortura sistemática contra
presos políticos. Como resultado, o Brasil é atualmente o único país
latino-americano onde o número de casos de tortura aumentou em relação àqueles
ocorridos no regime militar [...]. Poderíamos insistir que nenhuma empresa que
apoiou ou financiou o golpe e a ditadura foi obrigada a fazer sequer um mea culpa público. Por mais paradoxo que
possa parecer, a única a fazê-lo foram as Organizações Globo. Desta forma, a
sociedade não sinaliza repulsa em relação à conspiração contra o funcionamento
de sua democracia.
Mesmo nossas leis constitucionais
continuaram permeadas pelo legado ditatorial. O Brasil foi capaz de legalizar o
golpe de Estado em sua Constituição de 1988. No artigo 142, as Forças Armadas
são descritas como “garantidoras dos poderes constitucionais e, por iniciativa
de qualquer destes, da lei e da ordem”. Ou seja, poderemos ver situações nas
quais, por exemplo, o presidente do Senado pede a intervenção militar em
garantia da lei (mas qual?, sob qual interpretação?) e da ordem (social? moral? jurídica?) para legalizar constitucionalmente ações arbitrárias.
A incapacidade de construir uma
repulsa coletiva visível à ditadura é a maior responsável pela perpetuação da
lei da anistia. Valeria a pena insistir no absurdo que é a leitura de tal lei,
como se fosse resultado de ampla negociação com setores da sociedade civil e da
oposição.
A insistência em conservar essa
leitura é ilegal sob dois aspectos. Primeiro, há um conflito de soberania. O
Brasil, ao reconhecer a existência do conceito de “crime contra a humanidade”
[...] abriu mão de parte de sua soberania jurídica em prol de uma ideia
substantiva de universalidade de direitos. Os acordos políticos nacionais não
podem estar acima da defesa incondicional dos cidadãos contra Estados que
torturam, seqüestram, assassinam opositores, escondem cadáveres e estupram.
[...]
Além disso, a lei é ilegítima em
sua essência. Na verdade, não houve negociação alguma, mas pura e simples
imposição das condições a partir das quais os militares esperavam se
autoanistiar. O governo de então recusou a proposta do MDB de anistia ampla,
geral e irrestrita, tal como a sociedade civil organizada exigia, e enviou para
o Congresso Nacional o seu próprio projeto.
[...]
O texto da Lei da Anistia era
claro a respeito de seus limites. No segundo parágrafo do seu primeiro artigo,
lê-se: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela
prática de crimes de terrorismo, de assalto, de seqüestro e atentado pessoal”.
Por isso, a maioria dos presos políticos não foi solta em 1979, ano da
promulgação da lei. Eles permaneceram na cadeia e só foram liberados por
diminuição de penas. Os únicos anistiados, contra a letra da lei que eles
próprios aprovaram, foram os militares que praticaram terrorismo de Estado,
seqüestro, estupro, ocultação de cadáver e assassinato.
A Lei de Anistia consegue a
proeza de ser, ao mesmo tempo, ilegítima na sua origem e desrespeitada
exatamente pelos que a impuseram. Um belo exemplo do tipo de singularidade
lógica que a ditadura militar nos legou.
Vladimir Safatle. “Como perpetuar uma ditadura”. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 9 / Nº 103 / 2014.
p. 36-39.
NOTA: O texto "Ditadura no Brasil: Anistia ilegal e ilegítima e o legado da ditadura" não representa, necessariamente, o
pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a
construção do conhecimento histórico.
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