"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 23 de novembro de 2013

Corpo, objeto político

Historicamente, o termo “corpo” (do latim, corpus) era utilizado pelas ciências biomédicas e exatas para explicar organismos vivos e esquemas matemáticos. Epistemologicamente, esteve ligado às áreas da biologia e da medicina, sempre analisado do ponto de vista fisiológico e funcional. A historiografia francesa foi pioneira, na década de 1970, ao investigar o corpo como sujeito, com complexos significados. O estudo da história do corpo necessita muitas vezes do diálogo com outras disciplinas, e ela pode ser estudada em associação à religião, à sexualidade, ao Estado, à disciplina, à saúde, mas também aos gestos, ao prazer, à alimentação, às vestimentas, e assim por diante. Daí a dificuldade em criar uma definição absoluta para o termo.


Descansando, Adolf Hölzel

Já na Grécia e Roma antigas existia o culto ao corpo. Esculturas de mármore, à semelhança dos deuses, torneavam o “corpo ideal”, no qual se inspiravam homens e mulheres. Já na Idade Média, o corpo se tornou sagrado, associado à castidade e à religião. Suspenso e exposto, o corpo seminu de Cristo representou o foco de inflexão da sociedade cristã, que contrapôs ao corpo sagrado o profano, vendo-o como infiel (descrente). Isso não quer dizer que a sexualidade, por exemplo, desapareceu naquela época. A diferença é que o prazer não estava mais no corpo, mas sim na exaltação da fé religiosa e, por conseqüência, na defesa da castidade.

Em um retorno conceitual ao classicismo, os renascentistas colocaram o corpo humano no centro do universo (antropocentrismo) e tentaram entendê-lo como uma máquina. A partir da criação dos Estados nacionais, com o Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, surgiu o corpo laico, objetivo, material. De caráter coletivo, o progresso de uma nação só poderia ser atingido com um corpo social forte, baseado em preceitos científicos e inspirados pelo cartesianismo da época. É possível dizer que a ideia do bipoder (poder sobre o corpo) nasceu nesse momento, com o crescimento das populações nos centros urbanos.

Na Era Contemporânea, com a ascensão do capitalismo e o nascimento do proletariado, a ameaça de revolta da população insatisfeita vivendo em lugares insalubres conduziu as discussões sobre o corpo para o âmbito da disciplinarização e da medicalização social. Em ambos os casos, as normas e as políticas públicas, voltaram-se para sanar as doenças sociais: loucura, alcoolismo, prostituição e as epidemias, tendo em vista controlar o corpo coletivo para a eficiência no trabalho e o fortalecimento do Estado. O corpo tornou-se então objeto de estudo da medicina, de onde não sairia mais.

Foi somente após o final da Segunda Guerra Mundial que houve uma reorientação dos paradigmas ligados ao corpo. Resultado da somatória de todas as temporalidades, a formulação de um conceito sobre corpo atualmente continua desarticulada. A todos esses entendimentos são somados os desafios impostos no tempo presente: o direito à identidade, o individualismo, a obsessão pelo corpo perfeito, as descobertas genéticas e o corpo cibernético.

O corpo, portanto, é o objeto de estudo da história cultural, e, apesar de ser entendido equivocadamente como uma faceta da vida privada, sobre ele sempre agiram – e agem – micropoderes que pontuaram relações, negociações e resistências. Dessa forma, o corpo não pode ser entendido como um objeto historicamente passivo, mas sim político. (Pietra Diwan é historiadora, mestre pela PUC-SP)


In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 4: Idade Contemporânea. Rio de Janeiro: Duetto, 2009. p. 10.

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