Velho entrega a uma jovem uma carta de amor no desenho de Carlos Julião. Amor cortês para as brancas, mãos nos peitos para as negras: as investidas variavam de acordo com os "tipos" de mulheres.
O padre Manuel da Nóbrega chegou à Bahia em 1549, à frente de seis inacianos, inaugurando a presença jesuítica na colônia. Em 1553, não teve como esconder seu desalento com a conduta do clero colonial. “A evitar pecados esse clero não veio”, escreveu a outro padre. Queixou-se de que os padres viviam amancebados com as índias, chamadas por ele de “negras da terra”, alegando que eram suas escravas! Além disso, absolviam todo tipo de lubricidade, sem dar qualquer penitência. Era caso de “chorar”, escreveu Nóbrega.
É claro que ele se referia ao
clero secular, não aos quadros da Companhia, “soldados de Cristo”, que levavam
a sério a militância apostólica. Quando não a levavam, eram expulsos. Já os
“clérigos do hábito de São Pedro” não tinham a mesma formação dos jesuítas ou
de outros frades regulares. O paradigma deste julgamento, em todo caso, a moral
cristã, em sua versão católica: sexo é coisa má, só tolerável no matrimônio, e
só de vez em quando, para procriar os filhos de Deus.
Nóbrega teria razão ao criticar,
em meados do século XVI, os padres que vinham pastorear almas no Brasil? Do
ponto de vista da Igreja, tinha toda a razão – e ainda teria se vivesse no
século XVII ou no XVIII.
Basta ler a confissão do padre
Frutuoso Álvares, o primeiro a se apresentar ao visitador do Santo Ofício, na
Bahia, em 29 de julho de 1591. Disse que nos últimos 15 anos tinha cometido
“tocamentos torpes” com 40 pessoas, “abraçando, beijando”, a começar por um
jovem de 18 anos. Contou que, neste caso, “tocou com as mãos” em sua “natura”,
isto é, no seu pênis, provocando, por duas vezes, “polução” (gozo) no “membro
viril” do rapaz.
A linguagem oficial da época é,
aliás, saborosa. O pênis era chamado de “natura”, “membro viril”, “membro
desonesto”. Desonestidade, por exemplo, era palavra muito usada para designar
lubricidade, sensualidade ou simplesmente sacanagem. Nos documentos de época já
aparece a expressão “fazer as sacanas”. No caso dos tocamentos em que padre
Frutuoso era perito, também havia uma expressão em parte familiar: “jogar as
punhetas”.
Padre Frutuoso, vigário no
Recôncavo da Bahia de Todos os Santos – todos eles! – foi o primeiro a
confessar que “fazia sacanas” no Brasil desde o tempo em que serviu na Madeira
– a ilha, vale dizer. Estimou em cerca de 100 parceiros, “pouco mais ou menos”,
o número de rapazes (sempre jovens) nos quais jogara “as punhetas”. Devem ter
sido uns 200 ou 300.
Nóbrega tinha razão ao criticar
os padres seculares? Há vários outros exemplos nos papéis inquisitoriais. Padre
Jacome de Queiroz também se apresentou, de sua própria iniciativa, ao
visitador, para confessar que tinha sodomizado duas índias. Alegou que o fez
sem querer: como tinha tomado muito vinho, ao achegar-se às meninas, “errou de
vaso” e, ao invés de penetrar no “vaso natural”, como devia (?), meteu seu
“membro desonesto” no vaso traseiro, por vezes grafado no documento, em latim, vas preposterum.
O mais incrível neste caso é que
o visitador mal ligou para o fato de que as índias em causa eram meninas, uma
de 6, outra de 7 anos. Hoje seria caso de pedofilia e abuso sexual de menores.
Na época, não passava de sodomia. A questão era saber em que vaso o padre mete
seu “membro viril” e se o fez por escolha ou por acidente. O grande historiador
francês Phillipe Áries esclarece: nesta época, as pessoas viam as crianças como
“pequenos adultos”.
Devemos deduzir, desses exemplos,
que a lascívia dos padres era típica do clero secular? Nada disso. No século
XVIII, o frei franciscano Luís de Nazaré, vigário nas Minas, alegava ser
exorcista sem sê-lo e, quando sabia de moças adoecidas e melancólicas,
apresentava-se para curá-las, expulsando o demônio. De Bíblia na mão e com seu
membro viril à mostra, jogava o “jogo dos punhos”, esfregando o sêmem pelo
corpo da “possuída”. Preso pelo Santo Ofício, alegou que fez tudo por luxúria,
não por acreditar que o sêmem era capaz de expulsar demônios. Acrescentou que
as mulheres do Brasil eram tolas e acreditavam em qualquer coisa. A Inquisição
só não disse “tudo bem” porque cassou as ordens sacras do frei.
Também no século XVIII, outro
frade regular, pertencente à Ordem das Mercês do Pará, preferia rapazes.
Gostava, em particular, de oferecer seu “vaso traseiro” e como por vezes o “vaso
sangrava”, ele dizia que estava menstruado. Numa palavra: o frade das Mercês
dizia que era mulher, disfarçada de frade. Ele acrescentou, como frei Luís de
Nazaré, de Minas, que também os rapazes do Brasil eram tolos e acreditavam em
tudo.
Voltando aos padres seculares e
aos heterossexuais, Lara Lages, em sua tese de doutorado, tratou dos solicitantes as turpia. Quem eram?
Padres, em geral seculares, que no ato da confissão, ou a propósito dela,
“cantavam” as mulheres, quando não avançavam nelas. Muitos alegavam que, sendo
eles padres, não havia pecado no avanço. Deus perdoava. Outros, tratando com
mulheres casadas, diziam que eles, padres, eram ricos, e poderiam regá-las
muito mais que seus maridos. A subversão da doutrina católica era total.
O mais interessante, porém, é que
havia uma gradação “sociológica” nas investidas dos solicitantes ad turpia: com mulheres “brancas e honradas”, eles
vinham com uma conversa amorosa, tipo amor cortês. Um deles mandou uma
florzinha entredentes pelas grades do confessionário. Mas com mulheres negras,
escravas ou forras, cortesia zero: mãos nos peitos, mãos debaixo da saia.
Trópico dos pecados? Sim. Prova
de que a Igreja era conveniente com sodomias, pedofilias e abusos sexuais? Só
conhecemos tudo isso porque a Igreja Católica tinha aparatos de vigilância e
punição dos padres que subvertiam a moral cristã. Punia alguns. Os papéis da
Inquisição dão a prova. Os jesuítas, por sua vez, quase não aparecem como réus
nesses escândalos: Ad majorem Dei Glorium
– tudo pela glória de Deus. Ou, como diria Gilberto Freyre: “donzelões
intransigentes”.
Ronaldo Vainfas é professor da
Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico
dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. In: Revista de História da Biblioteca Nacional.
Ano 8, nº 93, junho 2013. p. 21-22.
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