"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 16 de novembro de 2013

Civilizações e patriarcado 1: as origens

Dama de Brassempouay. Ca. 25000 a.e.c.

Por volta do quarto milênio a.e.c., um número de sociedades estava começando a mudar a fase de organização conhecida por “civilização”. Embora os contatos entre diferentes grupos fossem virtualmente tão velhos quanto a existência da espécie humana, a maior parte das civilizações antigas vivia de certa forma separada. A civilização mesopotâmica, que surgiu depois de 3500 a.e.c., diferia da civilização egípcia, que emergiu logo depois no norte da África, não muito distante do sul. Por volta do quarto milênio a.e.c., também, a maior parte das sociedades agrícolas tinha desenvolvido novas formas de desigualdades entre homens e mulheres, num sistema geralmente chamado de patriarcal – com o domínio de maridos e pais. As civilizações, de uma forma geral, aprofundaram o patriarcado e, ao mesmo tempo, definiram seus detalhes de formas distintas que combinavam com crenças e instituições mais amplas de cada civilização em particular. Nesse sentido, pondo um selo próprio no patriarcado, cada civilização uniu as questões de gênero com aspectos de sua estrutura cultural e institucional. [...]

A sociedade humana começou na base de pequenos grupos de pessoas, em bandos de caçadores e coletores. Com essa estrutura, as pessoas se espalharam nas áreas mais habitáveis do mundo por volta de 12000 a.e.c. Depois. Por volta de 10000 a.e.c., a agricultura foi introduzida no norte do Oriente Médio, mudando radicalmente a estrutura da vida humana nas regiões em que se estabeleceu. À medida que a agricultura se espalhou, muitas sociedades formaram padrões de moradia mais estáveis, embora importantes grupos continuassem a caçar e coletar ou se apoiassem na criação nômade de animais, como ocorreu em largos trechos da Ásia Central. A agricultura permitiu a geração de um excedente de produção com relação às necessidades imediatas. A partir desse excedente, um pequeno número de pessoas pôde se especializar em atividades não-agrícolas, como artesanato, religião e governo. Os aprimoramentos na produção agrícola foram graduais, mas, por volta de 4000 a.e.c., novamente no Oriente Médio e arredores, uma importante série de invenções introduziu novas mudanças lideradas pela invenção da roda e o uso de metais, particularmente o bronze. Em decorrência disso, por volta de 3500 a.e.c., a primeira civilização foi formada na Suméria, no vale entre o Tigre e o Eufrates. Isso foi logo seguido pelo estabelecimento de civilizações em outros centros localizados em vales, como ao longo do Nilo na África, do rio Indo no noroeste da Índia e do rio Amarelo na China.

As civilizações diferiam de outros tipos de sociedades agrícolas no fato de terem governos formais, no lugar de lideranças menos explícitas e diferenciadas. Apoiavam-se em cidades, embora só uma minoria vivesse ali. Estimulavam o comércio. A maioria delas, também, tinha a escrita, o que facilitava atividades burocráticas e comerciais.

O estabelecimento da civilização também fez avançar uma tendência a enfatizar as diferenças das instituições e formas culturais, destinadas a promover alguma unidade dentro do grupo e diferenciá-lo do modo exterior. Dessa forma, quase todas as civilizações desenvolveram um pronunciado sentido de quão diferente eram dos “outros” – a quem os gregos chamariam de bárbaros. Embora nem todas as civilizações tenham se expandido muito, houve uma tendência expansionista a fim de somar recursos e aliviar a pressão populacional. Com a expansão, surgiu uma necessidade óbvia de identificar algumas características comuns – tanto em termos de idioma, religião ou estilo político – que manteriam o território e as populações (muitas vezes diferentes) juntos. Cada civilização desenvolveu algo de próprio. O Egito enfatizou uma forte monarquia, definiu uma preocupação com a vida após a morte e uma arte alegre e colorida. A Mesopotâmia, mais sujeita a desastres naturais e instabilidade política, colocou menos realce num governo único e central; sua religião era mais pessimista, apoiada em punições na outra vida. Por outro lado, a Mesopotâmia introduziu um interesse maior pela ciência.

O período inicial da civilização, nos quatro centros afro-eurasianos, estendeu-se até cerca de 1000 a.e.c., ponto em que muitos tinham se desestruturado ou enfraquecido, com freqüência em face de uma nova ordem de invasões de grupos nômades, como as tribos indo-europeias da Ásia Central. Seguiu-se um período clássico na história das civilizações. No Mediterrâneo (envolvendo o norte da África, o oeste da Ásia e o sul da Europa), na Índia e na China, complexos civilizatórios maiores começaram a emergir a partir de 800. As civilizações clássicas expandiram seus aparatos culturais, políticos e comerciais. O comércio interno aumentou, permitindo a regiões diferentes de cada civilização se especializarem. Governos mais ambiciosos constituíram impérios. A China promoveu a tradição imperial mais duradoura, mas impérios foram importantes também na Índia, na Grécia e principalmente em Roma. Afirmações de valores culturais-chave – hinduísmo e budismo na Índia, confucionismo e daoísmo na China, religiões civis mas também filosofia secular na Grécia e em Roma – ajudaram a cimentar o arcabouço cultural. Essas culturas ofereciam certa unidade, ao menos nas classes altas, perpassando a sociedade: os bem-nascidos chineses podiam falar e escrever a mesma língua e participar de um sistema filosófico comum. [...]

À medida que as economias agrícolas e depois as civilizações se formaram, continuaram os contatos de vários tipos. Uma vez que a espécie humana migrou com tanta freqüência, os contatos e as trocas se tornaram virtualmente endêmicos. Por meio deles, bem antes do período clássico, várias áreas ganharam acesso a novos tipos de alimentos, não naturais da região, e a novas tecnologias – incluindo agricultura e trabalho com metais. As migrações e as invasões periódicas de grupos nômades forneceram uma fonte de contatos. O comércio foi outra fonte. Bem antes do período clássico, as rotas de comércio se estenderam da China através da Índia e Ásia Central até o Oriente Médio e o Mediterrâneo; esse percurso todo ficou conhecido como a Rota da Seda, por ser a seda a principal mercadoria comercializada. As mesmo tempo, o impacto de muitos contatos foi bastante limitado. Pessoas muito ricas na região mediterrânea gostavam da seda chinesa – tecido favorito no Império Romano, por exemplo -, mas não sabiam nada sobre a China, uma vez que não se faziam viagens diretas. O comércio ocorria por meio de etapas.

A maior parte dos avanços em uma civilização se mantinham internos, exatamente como o comércio. As restrições decorriam não só de uma considerável suspeita com relação aos forasteiros, mas também da lentidão das viagens de longa distância sempre tão arriscadas, o que limitava a extensão e o impacto das trocas. As grandes civilizações clássicas raramente tinham contato imediato entre si. A maior parte tinha ao redor de si uma “zona de amortecimento” habitada por nômades ou por povos agrícolas menos organizados. Assim, tanto o Oriente Médio quanto o Egito, e depois a região mediterrânea clássica, estabeleceram ligações com o centro em desenvolvimento ao longo do alto Nilo na África subsaariana, que se chamava Kush. A China, sob a dinastia Han, tinha alguma influência na Coréia e no Vietnã. A Índia, a sociedade de comércio mais ativa, fazia trocas com várias partes do sudeste da Ásia, incluindo a atual Indonésia.

O único exemplo importante de contato direto entre as maiores civilizações clássicas antes do final dos séculos da Era Clássica depois de 300 e.c. envolveu as conquistas no século IV e.c. de Alexandre, o Grande, no Oriente Médio, na Pérsia e no noroeste da Índia. Um reino sob influência da cultura grega – Báctria – foi estabelecido nessa parte da Índia por mais de um século. A partir dessa permuta incomum, a Índia, durante algum tempo, imitou estilos artísticos helenísticos, com estátuas de Buda vestidas com roupas de estilo mediterrâneo. A Índia também utilizou alguns conceitos matemáticos desenvolvidos na Grécia. Além disso, a troca encorajou regentes indianos posteriores a pensar em enviar emissários budistas para o Oriente Médio. Ali eles não conseguiram conversões, mas possivelmente introduziram conceitos éticos que haveriam de influenciar sistemas filosóficos como os estóicos e, por intermédio deles, o cristianismo. Esse foi um resultado importante, mas de forma geral o contato, excepcional a princípio, teve poucas conseqüências duradouras. As próprias civilizações foram influenciadas por trocas internas – como as “religiões misteriosas” que se espalharam para o oeste do Egito e Oriente Médio no Império Romano, ou o impacto crescente das instituições do Norte da Índia, incluindo o hinduísmo e os sistema de castas, no sul da Índia. No entanto, as mais características formas políticas e culturais de cada civilização permaneceram separadas: o confucionismo era chinês, o hinduísmo (exceto por uma pequena incursão no sudeste da Ásia) era da Índia etc.

À medida que as civilizações de desenvolveram, a partir dos contatos e das limitações das trocas, os sistemas de gênero – relações entre homens e mulheres, determinação de papéis e definições dos atributos de cada sexo – foram tomando forma também. Por fim, essa evolução haveria de se entrelaçar com a das civilizações.

O deslocamento da caça e coleta para a agricultura pôs fim gradualmente a um sistema de considerável igualdade entre homens e mulheres. Na caça e na coleta, ambos os sexos, trabalhando separados, contribuíam com bens econômicos importantes. As taxas de natalidade eram relativamente baixas e mantidas assim em parte pelo aleitamento prolongado. Em conseqüência disso, o trabalho das mulheres de juntar grãos e nozes era facilitado, pois nascimentos muito freqüentes e cuidados com crianças pequenas seriam uma sobrecarga. A agricultura estabelecida, nos locais em que se espalhou, mudou isso, beneficiando o domínio masculino. À medida que os sistemas culturais, incluindo religiões politeístas, apontavam para a importância de deusas, como geradoras de forças criativas associadas com fecundidade e, portanto, vitais para a agricultura, a nova economia promovia uma hierarquia de gênero maior. Os homens agora eram responsáveis, em geral, pela plantação; a assistência feminina era vital, mas cabia aos homens suprir a maior parte dos alimentos. A taxa de natalidade subiu, em parte porque os suprimentos de alimentos se tornaram um pouco mais seguros, em parte porque havia mais condições de aproveitar o trabalho das crianças. Essa foi provavelmente a razão principal de os homens assumirem a maior parte das funções agrícolas, já que a maternidade consumia mais tempo. Dessa forma, as vidas das mulheres passaram a ser definidas mais em termos de gravidez e cuidados de crianças. Era o cenário para um novo e penetrante patriarcalismo.

Nas sociedades patriarcais, os homens eram considerados criaturas superiores. Tinham direitos legais que as mulheres não possuíam (embora as leis protegessem as mulheres de alguns abusos, pelo menos no princípio). Assim, o Código de Hamurabi, na Mesopotâmia, a partir do segundo milênio a.e.c., estabelecia que uma mulher que não “tenha sido uma dona de casa cuidadosa, tenha vadiado, negligenciado sua casa e depreciado seu marido” deveria ser “jogada na água”. Não havia contrapartida disso para os homens, embora o código estabelecesse que a esposa poderia abandonar o marido se ele não provesse suas necessidades.

Muitas sociedades agrícolas impediram as mulheres de possuírem propriedade de forma independente, Muitas permitiram que os homens tivessem várias mulheres (se pudessem sustentá-las). A maior parte punia as ofensas sexuais das mulheres – por exemplo, o adultério – muito mais severamente do que as dos homens. De fato, alguns historiadores argumentaram que uma justificativa-chave para a existência do patriarcado era garantir, com o máximo de certeza possível, que os filhos de uma mulher fossem do marido. Dada a importância da propriedade em sociedades agrícolas (em contraste com as de caça e coleta), os homens sentiam necessidade de controlar a herança de gerações futuras, e isso começou regulando a sexualidade das esposas. Outros indícios eram igualmente importantes. Havia preferência por filhos em vez de filhas. Muitas famílias adotaram o infanticídio para ajudar a controlar a taxa de natalidade, eliminando as meninas com mais freqüência. Culturalmente, os sistemas patriarcais enfatizavam a fragilidade das mulheres e sua inferioridade. Insistiam nos deveres domésticos e algumas vezes restringiam os direitos das mulheres a aparecerem em público. O alcance do patriarcalismo foi poderoso e extenso. Muitas mulheres ficaram tão intimidadas e isoladas pelo sistema que formas de protesto se tornavam improváveis – embora algumas mulheres pudessem obter certa satisfação em manipular seus maridos e filhos ou em dar ordens a mulheres inferiores no ambiente doméstico.

A desigualdade das mulheres tendeu, além do mais, a aumentar com o passar do tempo, à medida que as civilizações agrícolas se tornavam mais bem-sucedidas. A lei judaica, surgida um pouco depois do Código de Hamurabi, era mais severa no tratamento da sexualidade das mulheres ou de seu papel público. Em outras partes do Oriente Médio, surgiu o uso do véu quando as mulheres estivessem em público, como sinal de sua inferioridade e de seu pertencimento a pais e maridos. A deterioração dos papéis das mulheres na China apareceu com o costume de enfaixar os pés, sob a dinastia Tang, depois que terminou o período clássico; os pequenos ossos dos pés das meninas eram quebrados para impedir que andassem com facilidade, e o jeito desajeitado de andar que resultou disso era recebido como sinal de beleza e modéstia respeitável. Pressões desse tipo existiam principalmente sobre mulheres da classe alta, em que as famílias tinham condições econômicas para dispensar o trabalho produtivo feminino; essas pressões tenderam a se espalhar, e ter um impacto simbólico mais amplo. O costume chinês de enfaixar os pés terminou apenas no início do século XX.

As razões da tendência à deterioração em civilizações estabelecidas envolveram o crescimento do poder de governos dominados por homens, que levaram à redução do papel político informal exercido pelas mulheres dentro das famílias. O fator-chave, no entanto, foi uma prosperidade, em particular para a classe alta, que permitiu enfatizar o papel ornamental das mulheres em detrimento de papéis práticos.

A força do patriarcado caiu sobre as mulheres, mas obviamente afetou também as definições de masculinidade. Os homens, independentemente da personalidade de cada um, deveriam assumir seus papéis de dominantes. Deviam evitar mimar as mulheres, especialmente em público. Com freqüência, precisavam estar prontos a assumir deveres militares ou de outro tipo de liderança e, em princípio, eram evidentemente responsáveis pela sobrevivência econômica da família. Em muitos casos, os filhos mais velhos eram privilegiados de maneira particular, mesmo entre os homens, pois o patriarcado poderia estabelecer uma hierarquia e lhes entregar o poder total sobre a família. Algumas sociedades autorizavam outras categorias para os homens, tolerando-lhes comportamentos ou vestimentas mais próprios de mulheres, ou mesmo orientação homossexual. Outros grupos de homens podiam ser selecionados: em algumas religiões  os sacerdotes deveriam evitar o sexo, enquanto os homens que supervisionavam esposas e concubinas da corte de um governante (e que por vezes alcançavam considerável poder político em parte porque não podiam ter filhos para não confundir com a prole do rei ou imperador) podiam ser castrados, como eunucos – um testemunho algo desajeitado da ênfase na sexualidade masculina.

[...]

STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto, 2012. p. 27-34. 

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