"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O Cristianismo

O cristianismo antigo tem duas etapas históricas claramente distintas. Houve uma primeira fase em que se difundiu pelas comunidades judaicas da Ásia Menor e do Egito e que “incluía uma grande variedade de vozes, um extraordinário leque de pontos de vista”. Na Síria e no Egito, convivia com seitas judias diversas, antes da fase de predomínio do gnosticismo, em que a doutrina se impregnou de traços do pensamento oriental e do paganismo greco-romano. Era lógico que as diferenças doutrinais não fossem vistas como decisivas a grupos que compartiam a crença de que o fim do mundo estava próximo. Este componente escatológico, herdado da tradição apocalíptica que florescia na Palestina nos tempos de Cristo, foi um elemento fundamental do cristianismo ao redor do ano 200 quando, não tendo chegado o fim do mundo, os cristãos voltaram à vida normal. Desde este momento, as posturas extremas sobre o ascetismo conservaram-se apenas entre os grupos mais extremados do cristianismo oriental. Na cristandade ortodoxa, a norma da castidade absoluta ficou para os “pais do deserto” – os ascetas egípcios ou os eremitas da Síria ou Capadócia -, de quem os monges a tomaram e, só gradualmente e muito mais tarde, generalizou-se no clero secular.

Folio Papiro 46 contendo 2 Corintians, 11:33-12:9 (uma das primeiras coleções do século III das epístolas paulinas)

ενσαργανηεχαλασθηνδιατουτειχουσ
καιεξεφυγοντασχειρασαυτουκαυχασ
θαιδειουσυμφερονμ[ε]νελευσομαιδε
εισοπτασιασκαιαποκαλυψεισκυοιδα
ανθρωπονενχωπροετωνδεκατεσσαρων
θιτεενσωματιουκοιδαειτεεκτοστουσω
ματοσουκοιδαοθσοιδεναρπαγεντατον
τοιουτονεωστριτουουρανουκαιοιδατον
τοιουτονανθρωπονειτεενσωματιειτε
χωριστουσωματοσουκοιδαοθσοιδενοτι
ηρπαγηεισυονπαραδεισονκαιηκουσεν
αρρηταρηματααουκεξονανθρωπωλα
λησαιυπερτουτοιουτουκαυχησομαιυπερ
δεεμαυτουουδενκαυχησομαιειμηενταις
ασθενειαισεανγαρθελωκαυχησομαι
ουκεσομαιαφρωναληθειανγαρερω
φειδομαιδεμητισεμελογισηταιυπερ
οβλεπειμεηακουειτιεξεμουκαιτη
υπερβολητωναποκαλυψεωνιναμη
υπεραιρωμαιεδοθημοισκολοψτησαρκι
αγγελοσσαταναιναμεκολαφιζηινα[μη]
υπεραιρωμαιυπερτουτουτρις[τονκυριον]
παρεκαλεσαινααποστηα[πεμουκαιει]
ρηκενμοιαρκεισοιηχα[ρισμουηγαρ]
δυναμισ[ενασθενειατελειταιηδισταουν]

A segunda etapa da história do cristianismo antigo é a de sua associação com o poder político do Império Romano, que o transformou em um “governo eclesiástico paralelo ao secular”, que com ele colaborava no cumprimento dos decretos imperiais. Seu caráter plural e comunitário desapareceu. O cristianismo transformou-se na Cristandade, que via a si mesmo como uma comunidade unitária e hierarquizada aspirava incluir todos os homens, estendendo seu controle a todas suas atividades.

Desde o primeiro momento, o imperador Constantino deu um sentido político a sua aliança com o cristianismo. A Igreja seria um dos apoios essenciais do império cristão que sobreviveria no Oriente até o século XV. No Ocidente, onde a estrutura imperial ruiu muito antes, a Igreja tentou restabelecê-la com a coroação de Carlos Magno em Roma ou com o papado imperial, que levaria os pontífices romanos a reunir o poder político e a função sacerdotal na sua pessoa, como herdeiros do império.

Nesta nova situação, criada pelo reconhecimento político do cristianismo, não podia permanecer a convivência pacífica das diversas correntes; era necessário eliminar os dissidentes: hereges e cismáticos. Os primeiros dissidentes perseguidos, os donatistas do norte da África, não discordavam na doutrina, mas se opunham à aliança do cristianismo com o poder político; consideravam-se os autênticos herdeiros da Igreja dos mártires e condenavam os que se aliavam ao império, valendo-se da força deste para impor-se nas divergências entre os cristãos. Alguns fiéis optaram por soluções pessoais que não ameaçavam a Igreja hierárquica e eram aceitos por esta, como os amacoretas, que se retiraram para o deserto, ou os monges, que se encerravam em mosteiros para levar vida em comum.

A “oficialização” do cristianismo não deve ser confundida com a cristianização do império, que se produziu a longo prazo e em uma série de etapas. O século IV foi um período de convivência pacífica em que a velha religião continuou a abrir templos, receber subsídios e regular a passagem do tempo com suas festas. Após a fugaz restauração do paganismo por Juliano, a situação começou a ser modificar com Teodósio I, que apoiou o estabelecimento da unidade religiosa através da força: fechou os templos pagãos e condenou os sacrifícios de animais como atos de alta traição.

Apesar das mediadas repressivas, entretanto, os sacrifícios continuariam a ser feitos de forma clandestina. Seriam necessárias perseguições e campanhas militares para acabar com as últimas comunidades pagãs, o que parece não ter acontecido até o século IX (os pagãos tinham, agora, mártires como Hypatia, uma professora de filosofia que foi apedrejada em Alexandria pelos seguidores do bispo). Frente a esta situação, os últimos filósofos pagãos começaram a fugir para a Mesopotâmia, onde estabeleceram uma comunidade que conservou a cultura grega e a transmitiu ao mundo islâmico.

A igreja cristã de Roma não era única. Havia, para começar, a do Oriente, quer dizer, a que seguiu associada ao império (que chamamos de bizantino) e que, depois, esteve associada aos novos poderes que os substituíram: o sultão turco ou os soberanos de cada país nas diversas igrejas nacionais. Houve também uma cristandade asiática muito importante que, no século XIII, se estendia desde o Egito até o mar da China, com núcleos relevantes na Mesopotâmia, Armênia, Cáucaso e Síria, e com conventos na Ásia Central, entre os turcos e mongóis.

A maior das igrejas cristãs asiáticas foi a nestoriana. Sua origem remonta à Igreja persa, que se tornou independente do Ocidente em 424, rompendo seus laços com Bizâncio. Seu chefe, o catholicos, residia em Ctesifonte, porém a atividade missioneira pela rota das caravanas criou comunidades cristãs desde Java até Azerbaijão. Em 1009, os kerait, o maior e mais culto dos povos mongóis da Ásia central, converteram-se ao cristianismo nestoriano. Mais tarde, seriam dominados por Genghis Khan, que respeitava as religiões dos povos que integravam seu império, não faltando, entre seus sucessores, quem mostrasse simpatia pelos cristãos.

Os mongóis foram, durante muito tempo, a grande esperança do cristianismo do Ocidente. Em 1258, organizaram uma cruzada que reconquistou Alepo e Damasco, onde as tropas vencedoras entraram em 1260 com um general nestoriano mongol na liderança, acompanhado de um príncipe armênio e de um cruzado ocidental. Porém, não encontraram apoio nem nos cruzados de Jerusalém nem no papa de Roma, que preferia a aniquilação dos hereges ao triunfo de um cristianismo plural (de forma semelhante, os cristãos do Ocidente permaneceram, mais tarde, indiferentes à tomada de Constantinopla pelos turcos).

Enquanto que se produzia o grande movimento de fechamento e de intolerância que, de 950 a 1250, converteu a Europa numa sociedade repressora (a perseguição aos judeus, a segregação dos grupos minoritários, o estabelecimento da Inquisição e o uso da tortura judicial), iniciava-se uma grande etapa de florescimento das heresias, que culminou nos séculos XII e XIII, durando até o XV. Era uma conseqüência da crise da igreja e da vontade de reforma que haviam surgido entre o clero e entre os fiéis.

Um dos pontos centrais de oposição à hierarquia da Igreja era a pretensão de impor, ao conjunto da sociedade, o monopólio da interpretação religiosa por parte dos clérigos ordenados, reduzindo o fiel à posição de receptor passivo de uma religião que lhe era transmitida exclusivamente pela via oral. Em seu afã por recuperar a pureza do cristianismo primitivo, os críticos da Igreja retomariam diretamente os textos, especialmente o das escrituras. Por mais limitada que fosse a alfabetização, parece claro que a heresia a havia estimulado com as traduções de textos bíblicos às línguas “vulgares”, como as que sabemos que foram feitas em Languedoc, na França ou na Catalunha, no século XIII.

A história destes movimentos chegou-nos na versão dos seus repressores, que ressaltaram os aspectos doutrinais e os ritos que divergiam dos “ortodoxos”, acrescentando-lhes uma carga de maldade diabólica, ao mesmo tempo que omitiam as queixas dos dissidentes contra a Igreja oficial.

Este é, por exemplo, o caso dos cátaros, que têm sua origem no movimento dos bogomilos da Bulgária, onde se podem encontrar elementos do dualismo oriental – a crença de que o mundo está dominado, ao mesmo tempo, por um princípio do bem e um princípio do mal -, mas que foram perseguidos, principalmente, porque propugnavam um retorno da Igreja à pureza e à pobreza evangélicas e porque davam apoio à resistência dos camponeses contra o feudalismo. O catarismo do Languedoc, que influiu fortemente na Catalunha, defendia uma vida simples de trabalho e abrigava crenças mais próximas do patrimônio da cultura popular do que da teologia romana. Oferecia, aos fiéis, sermões e orações na língua vulgar e, o que era mais importante, o exemplo de uma Igreja que não exigia dízimos, nem excomungava, nem matava como fazia a de Roma e que não estava comprometida com os senhores feudais que oprimiam os camponeses. Representava, por tudo isso, uma ameaça à ordem estabelecida, justificando uma cruzada e repressão feroz.

Todos estes movimentos religiosos, que se relacionaram e se entrelaçaram sutilmente até chegar a guerra dos camponeses alemães do começo do século XVI, estão estreitamente associados a levantes sociais que torna-se difícil separá-los. O movimento inglês dos lolardos de Wycliffe coincide no tempo, e em alguns de seus protagonistas, com a grande rebelião de Wat Tyler (a revolta de 1381 que propunha liquidar com o feudalismo). Apesar das perseguições que sofreram, grupos de clérigos lolardos continuaram mantendo sua fé em segredo, sobrevivendo por mais de um século até acabar fundindo-se com o protestantismo. Eram, na sua maioria, manifestações de uma religião de artesãos, pregada diretamente nos círculos que liam a Bíblia traduzida em língua vulgar, como ocorria na Itália e na França com a dos valdenses, um movimento que pode ser qualificado de religião dos laicos.

Os escritos de Wycliffe tiveram relação com o aparecimento, na Boêmia, do movimento dos hussitas, de cujas ramificações, uma, a dos taboritas, fazia propostas radicais de transformação social. Enquanto organizavam-se seis cruzadas contra os hussitas, começavam, na Alemanha, movimentos que tinham um duplo componente religioso e social e que culminaram, em 1524, com o início da guerra dos camponeses e o movimento, duplo e paralelo, da Reforma e da Contrarreforma, que não apenas tendiam à renovação do cristianismo, mas à consolidação da ordem social.


FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: Edusp, 2000. p. 302-306.

Nenhum comentário:

Postar um comentário