A primavera brasileira, que chegou no inverno, tem feito reivindicações sociais e econômicas de forma precisa, relativas aos transportes públicos, à educação e à saúde. Do mesmo modo, formularam-se críticas contundentes a escolhas e decisões do governo em matéria de política econômica, como, por exemplo, os gastos – indecentes – autorizados para a construção de monumentais estádios de futebol, quando, em contraste, os serviços públicos apresentam um quadro de lamentável precariedade. Com as manifestações do dia 11 de julho, suscitadas pelas centrais sindicais, e por organizações de trabalhadores da cidade e do campo, estas questões ganharam ainda em amplitude e profundidade. De modo imprevisto, pode-se dizer que elas entraram na pauta atual dos debates que se travam na sociedade, constituindo um ganho irreversível dos movimentos em curso.
Mas não apenas de direitos
econômicos e sociais tem falado a Rua.
Apareceram com grande força reivindicações
de caráter político. O principal alvo tem sido a mal chamada “classe política”,
evidenciando-se um processo de autonomização crescente entre os políticos
profissionais e os partidos, de um lado, e a sociedade, de outro. O autismo de
certos representantes, como os notórios presidentes do Senado e da Câmara dos
Deputados, que se permitiram usar aviões da Força Aérea para viagens privadas,
resumem, mas não exaurem, o descompasso entre os partidos políticos e os
cidadãos comuns.
O problema não é apenas
brasileiro. Trata-se de um fenômeno universal.
Criados originalmente por
movimentos de trabalhadores, ao final do século XIX, no contexto da civilização
fordista triunfante, os partidos, nas primeiras décadas de sua existência,
dispunham de elevada representatividade e pareciam exprimir fielmente anseios e
aspirações sociais. No entanto, já antes da Primeira Grande Guerra, em luminoso
estudo, Robert Michels, analisando o partido social-democrata alemão, apontava
nítidos sinais de burocratização, devido a padrões de organização
centralizados, verticais, hierárquicos. Abria-se um fosso entre representantes
e representados, constituindo-se os primeiros numa espécie de “estrato
diferenciado”, que se reproduzia continuamente, através de mecanismos próprios,
longe da vontade e do controle dos últimos.
A tendência acentuou-se com o
passar das décadas, afetando o conjunto da vida partidária, baseada no modelo
fundado pela social-democracia alemã, embora os partidos fossem muito
diferentes entre si e defendessem diferentes programas e objetivos.
As estruturas partidárias,
contudo, mantiveram-se, protegidas por instituições e legislações específicas,
reproduzindo-se, nutrindo-se da própria seiva, ampliando-se, monopolizando a
competição pelo poder e quase toda a vida política das sociedades. Nos anos
1920 e 1930, questionado fortemente por alternativas de direita (nazi-fascismo)
e de esquerda (socialismo soviético), o regime dos partidos sobreviveu a duras
penas. O programa democrático, em nome do qual fora esmagado o nazi-fascismo,
deu a eles um fôlego renovado.
Entretanto, desde os anos
posteriores à Segunda Guerra Mundial, teve início uma curva descendente, lenta,
mas insofismável, da influência dos partidos políticos na vida social. Nos anos
1960 e, especialmente, no ano quente de 1968, quando se multiplicaram
contestações e questionamentos à ordem vigente, os partidos pouco tiveram a
dizer, sempre a reboque dos acontecimentos, perdendo prestígio e
representatividade.
Nos regimes democráticos, mais
consolidados, é claro, há décadas, o crescimento da abstenção e do voto nulo.
Desconfiados, os cidadãos afastam-se dos partidos, que já não empolgam as
pessoas, sobretudo a juventude. Por outro lado, em inúmeras convulsões que têm
marcado os últimos anos – derrocada de ditaduras, desagregação do socialismo na
União Soviética e na Europa central, “primaveras árabes”, entre outros -, os
partidos políticos têm evidenciado notável incapacidade de diálogo e de
protagonismo, sendo praticamente ignorados.
O Brasil não escapa dessa
tendência. Ao contrário, alguns aspectos particulares a têm reforçado em nossas
latitudes: o esplêndido isolamento de Brasília, transformada numa espécie de
“ilha da fantasia”; as mordomias, existentes desde a fundação da nova capital,
ampliadas à época da ditadura e, desde então, sempre reforçadas; salários
desproporcionalmente altos; crédito fácil e barato; aposentadorias
compensadoras; planos de saúde especiais; passagens aéreas gratuitas;
assessorias sem tamanho; privilégios que não encontram paralelo no mundo, mesmo
em países muito mais ricos, e que não se limitam ao Parlamento federal (Câmara
e Senado), estendendo-se ao Executivo e ao Judiciário.
Construiu-se uma espécie de
barreira que separa os (podres) Poderes da cidadania, intensificando dinâmicas
que isolam, cada vez mais, as elites políticas da população.
Quando os episódios eleitorais,
por mais que se renovem os parlamentos – e o índice de renovação não é
desprezível -, a situação se reproduz. Os novos eleitos, cedo ou tarde, uns
mais, outros menos, tendem a ser engofados por esse mundo de privilégios, onde
(quase) todos fazem o que “todos fazem”. Em meio à prevaricação, o anormal
converte-se em norma, e “otário” é quem luta contra a insânia.
Espelho da nacionalidade,
deputados e senadores, desembargadores e ministros dos tribunais, presidente e
governadores não são “monstros”, ou extraterrestres, mas brasileiros, eleitos
ou nomeados por brasileiros. Em certo sentido, representativos, a par das
distorções não negligenciáveis derivadas da legislação eleitoral e da ação do
poder econômico.
O coro de tudo arrasar e
destruir, sob a alegação de que o regime é falido, não se sustenta. Já passamos
por uma longa – e recente – ditadura, feita em nome da luta contra a corrupção
e que só fez multiplicar desmandos de toda a ordem, acrescentando-se a tortura
como política de Estado.
Não se trata, portanto, de
desmontar o regime dos partidos, mas de impedir que eles dominem sem contraste
a vida política. Sociedades complexas não dispensam representantes, mas podem
aprender a regular e a reduzir seu poder, a controlá-los. Assim como é sabido
que monopólios são deletérios na vida econômica, trata-se, na vida política, de
acabar com o monopólio dos partidos.
Os movimentos sociais da
“primavera” brasileira, tão eficazes na denúncia dos desmandos econômicos e
sociais e na formulação de reivindicações nessas áreas, estão desafiados a
formular uma plataforma de reforma política que, sem destruir o regime
democrático, o aperfeiçoe, impedindo que as dinâmicas autonomistas cavem
abismos intransponíveis entre representantes e representados.
É com esse ânimo e essa intenção
que têm circulado na sociedade algumas ideias que merecem sem consideradas.
Elas aqui vão relacionadas na perspectiva de contribuir para um urgente e
decisivo debate.
1 Extinção do Senado e criação de
um Parlamento unicameral. A noção do respeito pela Federação, assegurando-se a
todos os estados patamares razoáveis de poder e influência, para que não sejam
esmagados pelos mais poderosos, pode ser garantida mediante quocientes
desiguais de representação, beneficiando estados menores ou menos populosos.
2 Extinção do maldito instituto
da reeleição. Introduzido em má hora, por métodos heterodoxos e casuísticos,
espalhou-se como praga, contaminando múltiplas instituições públicas, inclusive
escolas e universidades. Hoje em dia, o político ou o administrador que não
consegue se reeleger se tem como fracassado. Desde a primeira investidura, só
pensa na segunda ou na terceira, contribuindo para viciar o processo político.
A reeleição deveria ser proibida em todos os níveis e para todos os cargos
públicos. Respeitado um período de “quarentena”, a ser definido, o político
poderia concorrer de novo.
3 Redução dos mandatos de
parlamentares, em todos os níveis, para dois anos, o que, aliás, já é praticado
nos Estados Unidos (deputados estaduais em diversas unidades da federação
norte-americana têm mandato de apenas um ano).
4 Diminuição drástica dos
privilégios e das assessorias dos parlamentares que passariam a ter assessores
profissionais, aprovados em concursos públicos.
5 No financiamento das campanhas
eleitorais, proibição, sob severas penas, de doações de pessoas jurídicas,
fixando-se um teto de R$ 5 mil reais para doações de pessoas físicas.
6 Manutenção e ampliação do
horário eleitoral gratuito, estabelecendo-se tetos para o custo de tais
programas.
7 Estabelecimento de candidaturas
avulsas. Qualquer cidadão poderia ser candidato para cargos parlamentares, caso
contasse com aprovação de 20 mil eleitores registrados, aumentando-se o
quociente para candidaturas a cargos executivos.
8 Facultar a determinadas
instituições civis a possibilidade de indicar candidatos.
9 Ampliação da legislação sobre
plebiscitos e referendos. Plebiscitos obrigatórios para questões indicadas por
mais de 500 mil cidadãos.
10 Ampliação da legislação
concernente às iniciativas populares, obrigando-se o Parlamento a considerar
tais iniciativas prioritariamente, caso reunidas 300 mil assinaturas, aferidas
por meios eletrônicos.
11 Regulamentação das mídias
impressas e audiovisuais, segundo padrões já definidos em regime democráticos
europeus.
Se a primavera brasileira
conseguisse unificar-se em torno de alguns desses pontos, formulando uma
plataforma de reforma política, a ser aprovada por um plebiscito nacional,
poderíamos, talvez, quebrar o círculo vicioso que bloqueia e desmoraliza o
regime democrático. Em vez de destruí-lo, trata-se de radicalizá-lo,
democratizando a democracia.
Daniel Aarão Reis é historiador
da Universidade Federal Fluminense (UFF). In: Revista História Viva. Ano IX, nº 118. p. 27-29.
Nenhum comentário:
Postar um comentário