A desigualdade perante a lei é o que fez e continua fazendo a história real, mas a história oficial não é escrita pela memória e sim pelo esquecimento. Bem o sabemos na América Latina, onde os exterminadores de índios e os traficantes de escravos têm estátuas nas praças das cidades e onde as ruas e as avenidas costumam levar os nomes dos ladrões de terras e dos cofres públicos.
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Nos anos 60 e 70, os militares assaltaram o poder. Para acabar com a corrupção política, roubaram muito mais do que os políticos, graças às facilidades do poder absoluto e à produtividade de suas jornadas de trabalho, que todos os dias começavam bem cedinho, ao toque da alvorada. Anos de sangue e sordidez e medo: para acabar com a violência das guerrilhas locais e dos fantasmas vermelhos universais, as forças armadas torturaram, violaram e assassinaram a torto e a direito, numa caçada que castigou qualquer expressão da aspiração humana por justiça, por mais inofensiva que fosse.
A ditadura uruguaia torturou e matou pouco. A Argentina, em contrapartida, praticou o extermínio. Mas apesar de suas diferenças, as muitas ditaduras latino-americanas desse período trabalharam unidas e se pareciam entre si, como cortadas pela mesma tesoura [...].
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Também as leis da impunidade parecem cortadas pela mesma tesoura. As democracias latino-americanas ressuscitaram condenadas ao pagamento das dívidas e ao esquecimento dos crimes. Foi como se os governos civis devessem ser gratos aos fardados pelo seu trabalho: o terror militar criara um clima favorável aos investimentos estrangeiros e limpara o caminho para que se concluísse impunemente a venda dos países, a preço de banana, nos anos seguintes. Em plena democracia, ultimaram-se a renúncia da soberania nacional, a traição dos direitos do trabalho e o desmantelamento dos serviços públicos. Fez-se tudo, ou tudo se desfez, com relativa facilidade. A sociedade que, nos anos 80. recuperou os direitos civis, estava esvaziada de suas melhores energias, acostumada a sobreviver na mentira e no medo, e tão doente de desalento como necessitada do alento de vitalidade criadora que a democracia prometeu e não pôde ou não soube dar.
Os governos eleitos pelo voto popular identificaram a justiça à vingança e a memória à desordem, e lançaram água-benta na testa dos homens que tinham exercido o terrorismo de Estado. Em nome da estabilidade e da reconciliação nacional, promulgaram-se leis de impunidade que desterravam a justiça, enterravam o passado e elogiavam a amnésia. [...]
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[...] Em toda a América Latina, o medo, às vezes submerso, às vezes visível, alimenta e justifica o poder. E o poder tem raízes mais profundas e estruturas mais duradouras do que os governos que entram e saem no ritmo das eleições democráticas.
Que é o poder? Com certeiras palavras o definiu, no princípio de 1998, o empresário argentino Alfredo Yabrán:
- Poder é impunidade.
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A impunidade recompensa o delito, induz à sua repetição e faz sua propaganda: estimula o delinquente e torna contagioso seu exemplo. E quando o delinquente é o Estado, que viola, rouba, tortura e mata, sem prestar contas a ninguém, emite-se do topo a luz verde que autoriza a sociedade inteira a violar, roubar, torturar e matar. A mesma ordem que, no andar de baixo, usa o espantalho do castigo para assustar, no andar de cima ergue a impunidade como troféu para recompensar o crime.
A democracia paga o preço desses costumes. É como se qualquer assassino pudesse perguntar, com a pistola fumegante na mão:
- Que castigo mereço eu, que matei um, se os generais mataram meio mundo e andam tão faceiros pelas ruas, são heróis nos quartéis e aos domingos comungam na missa?
Em plena democracia, o ditador argentino Jorge Rafael Videla comungava, na província de San Luis, numa igreja que proibia a entrada de mulheres de mangas curtas ou de minissaias. Em meados de 1998, engasgou-se com a hóstia: o devoto foi parar na prisão. Depois, por conta dos privilégios da idade, passou à prisão domiciliar. Era de esfregar os olhos: a obstinação exemplar das mães, das avós e dos filhos das vítimas tinha conseguido o milagre de uma exceção à regra latino-americana da impunidade. Videla, assassino de milhares, não foi castigado pelo crime de genocídio, mas ao menos teve de responder pelo roubo das crianças recém-nascidas nos campos de concentração, que os militares repartiam, como butim de guerra, depois de assassinar suas mães.
A justiça e a memória são luxos exóticos nos países latino-americanos. [...] O esquecimento, diz o poder, é o preço da paz, enquanto nos impõe uma paz fundada na aceitação da injustiça como normalidade cotidiana. Acostumaram-nos ao desprezo pela vida e à proibição de lembrar. Os meios de comunicação e os centros de educação não costumam contribuir muito, digamos, para a integração da realidade e sua memória. [...] A cultura de consumo, cultura de desvinculação, nos adestra à crença de que as coisas ocorrem sem motivo. [...]
Massacre de Pasco: os corpos das vítimas no chão, na cidade de Lomas de Zamora (Grande Buenos Aires). Imagem publicada originalmente no suplemento fotográfico anual El Auténtico nº 8, voz do Peronismo Autêntico (Montoneros), 24 de dezembro de 1975. Fotógrafo desconhecido.
A história se repete? Ou só se repete como penitência para quem é incapaz de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi continua pulsando, vivo, dentro do tempo que é, ainda que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de lembrar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que nunca é necessário reivindicá-lo e pô-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita; não para que os vivos sejamos ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco perpétuo da estupidez e da desgraça. Quando está realmente viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la. Mais do que nos museus, onde a pobre se entedia, a memória está no ar que respiramos; e ela, no ar, nos respira.
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A impunidade é filha da má memória. Sabiam disso todas as ditaduras militares de nossas terras. Na América Latina foram queimadas as crodilheiras dos livros, livros culpados por contar a realidade proibida e livros culpados simplesmente por serem livros, e também montanhas de documentos. Militares, presidentes, padres: é longa a história das fogueiras, desde que em 1562, em Maní de Yucatán, frei Diego de Landa lançou às chamas os livros maias, pretendendo incendiar a memória indígena. Para citar algumas labaredas, basta lembrar que em 1870, quando os exércitos da Argentina, Brasil e Uruguai arrasaram o Paraguai, os arquivos históricos do vencido foram reduzidos a cinzas. Vinte anos depois, o Brasil queimou toda a papelada que testemunhava três séculos e meio de escravidão negra. Em 1983, os militares argentinos lançaram ao fogo os documentos da guerra suja contra seus compatriotas; e em 1995, os militares guatemaltecos fizeram o mesmo.
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 2015.
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