"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Estética no fim do medievo: Cavalaria e cortesia


Jean de Saintré justa com o cavaleiro espanhol Enguerrant em um torneio. Miniatura, cerca de 1470. Antoine de la Sale.

O ideal cavalheiresco é indubitavelmente a mais tenaz dessas convenções, dentro de uma classe nobiliária onde, no entanto, as famílias se renovam mais depressa do que outrora. Este ideal continua a basear-se na virtude viril, cujo critério é a exaltação do valor e do êxito pessoais; o cavaleiro em busca de proezas ou de atos de destreza no manejo das armas não é menos provido destes dons do que o burguês em luta pela fortuna. Aquilo a que na Itália se chamava virtu tenta sublimar a energia, a paciência e o domínio de si: ascese mais humana do que cristã, em que se prolonga a rudeza medieval, anuncia-se a elegância do Renascimento e onde o "gentil-homem" e o "bom homem" se procuram sem ainda se encontrar.

Devemos dizer, no entanto, que a cavalaria e a cortesia, impondo seus imperativos de maneira cada vez mais rigorosa, mostram-se incapazes de refletir as novas estruturas da sociedade. Trata-se de um ideal fingido, colorido de afetação literária e preso ao irreal, mesmo para os que não aceitam, em nada, a alteração das virtudes cavalheirescas e são rigorosos no respeito ao seu código.

Segundo o ideal cortês, a mulher continua a ditar o comportamento cavalheiresco: este, porém, muda de tonalidade. Laura é para Petrarca a "senhora da espiritualidade"; o cavaleiro busca a inspiração para os seus feitos na "dama dos seus pensamentos". "Poucos homens nobres - dizia o pai de Lalaing a ele - alcançaram a alta virtude da proeza se não tiveram uma dama ou uma donzela por que estavam apaixonados." Com efeito, por esta se fazem promessas difíceis e mesmo extravagantes; os companheiros de armas de Eduardo III juraram às suas damas, em 1337, que andariam com o olho tapado por uma pala preta enquanto não cumprissem determinada façanha. É da sua "dama" que, no termo das provações em plena corte ou num "passo de armas", o cavaleiro andante espera a recompensa das suas longínquas e múltiplas proezas. Em vez de satirizar estes costumes, como já se acreditou, o Petit Jehan de Saintré, de La Salle, escrito para o filho do Rei René, continua fiel ao "nobre tempo de outrora"; no século anterior, no decurso da sua vagabundagem heroica, Tiago de Lalaing recebera, como Jehan, as lições da Dama das Belas Primas; tendo conquistado o coração das princesas por meio de presentes, conseguiu entrar um dia na liça, ostentando na cimeira um véu bordado de pérolas e um bracelete no pulso, arras das suas admiradoras. Certas cores, emblemas e divisas tornaram-se os símbolos combinados de uma fidelidade ideal, procurada ainda, só ao serviço da Cruz e dentro do respeito pela mulher, pelos cavaleiros agrupados em torno de Filipe de Meziéres e de Boucicaut nas ordens da Paixão, do Escudo Verde e da Dama Branca. No entanto, entre os membros das novas ordens - Estrela e Jarreteira, no século XIV, Tosão de Ouro e São Miguel, no século XV - muitos associavam ou mesmo substituíam as preocupações mundanas às aspirações heroicas dos cavaleiros antigos.

Embora nas "cortes de amor", inovação dos príncipes da Borgonha, a mulher mantivesse incontestavelmente o lugar central, continuaria ela sendo o objeto puro de um amor lícito? Cristina de Pisano elevou-se num debate apaixonado, contra a moral laxista do Romance da Rosa. E isto porque, desde João de Meung às Cem Novelas Novas, passando pelo Ménagier de Paris e pelas Quinze Alegrias do Casamento, circula em todas as obras uma moral mundana, cujas aparências corteses encobrem, mais ou menos veladamente, um desprezo cínico pela mulher, feito do desdém do homem por um ser fraco e por um instrumento de prazer. As esposas respeitadas por sua fecundidade ainda têm motivos para se considerar felizes: "Na minha opinião - escrevia um autor italiano - a beleza da mulher não se deve julgar pelas graças e gentilezas do rosto, mas pelo corpo bem formado e capaz de produzir belos filhos, em abundância." Os bastardos são numerosos em todas as famílias e não existe mesmo o falso pudor de escondê-los ou deserdá-los. Celebra-se como refinamento o amor fora dos laços legais. As conversas dos homens, guerreiros ou não, assumem caráter de extrema liberdade: o Senhor de La Tour-Landry não encontrara melhor tratado de educação para suas filhas do que as anedotas das casernas; a sociedade das cidades italianas e mais tarde a corte de Borgonha, a mais elegante de todas, lançam às senhoras, com a maior naturalidade do mundo, as graças mais ordinárias. Ninguém se choca com a mistura de religião e licenciosidade: Luís de Orléans, que levava vida dissoluta, sabia também trazer o cilício; seu filho Carlos, o poeta, assimila sem pensar em nada de mal, os sofrimentos dos "apaixonados da Observância" aos padecimentos místicos dos filhos de São Francisco.

Aliás, como poderia este retardado ideal cavalheiresco policiar a vida dos homens de armas habituados às violências? Segundo seus princípios, as probabilidades, tanto na guerra como nos torneios, deviam ser iguais entre os adversários: a vitória caberia assim ao mais valoroso. Isto não impedia, porém, que se verificassem, nos combates ou nas cavalgadas, as brutalidades mais atrozes contra a canalha dos peões, ou os vilãos que habitavam as choças. "Queimar, pilhar, violar" era a divisa de muitos cavaleiros, cujas atrocidades Froissart conta complacentemente, de tal forma estas haviam entrado nos costumes, transformando-se, a seus olhos, em pecadilhos de gentis-homens, embora fossem, pelo contrário, consideradas crimes quando praticadas por um vilão, um burguês ou um letrado. A crueldade, considerada uma virtude militar, era reservada aos nobres. "Sabereis ser cruel e altivo? perguntaram ao burguês Filipe Van Artevelde, quando assumiu a direção de revolta de Gand. Um duelo entre dois burgueses causava escândalo, pois só a aristocracia se sentia no direito de ouvir o "grito do sangue" e defender a honra dos "laços carnais". Nestes casos, até a emboscada era considerada lícita: o piedoso cruzado de Nicópolis mandou assassinar seu primo na escuridão de uma rua parisiense. Assim, não há pior castigo para um cavaleiro do que ser tratado como vilão: condenado por ter morto a esposa, o senhor de Giac foi afogado num saco cosido, como um animal daninho. Tratava-se de uma morte indigna de um cavaleiro.

PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 300-303. (História geral das civilizações, 7).

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