[...] o termo que se costuma traduzir por "eunuco"
pode ter vários significados nos escritos arcaicos. Em português e noutras
línguas modernas significa "homem castrado que se destinava à guarda das
mulheres nos haréns", correspondendo à sua raiz grega que significa
"guardião dos leitos". Na Antiguidade também se chamava assim ao
secretário ou favorito de um rei, talvez porque também lhe podia vigiar o
leito. Podemos então supor que nas versões actuais de textos milenares, como é
o caso da Bíblia, o termo "eunuco" refere em geral o homem que copula
com outros homens, quer seja hermafrodita, castrado ou tenha características
sexuais normais. O próprio Jesus Cristo dá aos seus discípulos uma explicação
um tanto ou quanto enigmática sobre este assunto:
"Disseram-lhe os discípulos: se tal é a condição do
homem com a mulher, é preferível não se casar. Ele respondeu-lhes: nem todos
podem entender assim, a não ser aqueles a quem é concedido. Porque existem
eunucos que nasceram assim, eunucos que foram feitos pelos homens e eunucos que
se fizeram a si próprios por amor ao reino dos céus. Quem puder entender, que
entenda."
A explicação anterior é perfeita para entender uma história
dos Actos dos Apóstolos, que ocorreu quando o fundamentalista judaico Paulo de
Tarso devastava a comunidade cristã de Jerusalém. Um anjo do Senhor apareceu ao
apóstolo Filipe dizendo-lhe para se dirigir para sul, pelo caminho que levava a
Gaza. "Pôs-se logo a caminho", diz o texto bíblico, "e
encontrou-se com um homem etíope, eunuco, ministro de Candace, rainha dos
Etíopes, intendente de todos os seus tesouros.". O forasteiro regressava
de uma peregrinação a Jerusalém no seu carro e lia um texto de Isaías em voz
alta. Filipe aproximou-se e perguntou se o compreendia. "Ele
respondeu-lhe: como vou compreendê-lo se ninguém me conduzir? E pediu a Filipe
para subir e se sentar a seu lado" (Actos, 8: 27-31). Enquanto lhe
explicava uma passagem bíblica, Filipe aproveitou para levar a água ao seu
moinho e anunciou-lhe a boa nova trazida por Jesus.
Pouco depois, chegam a um lugar onde havia água e o eunuco
perguntou-lhe se podia ser baptizado como cristão. E continua o texto do Novo
Testamento: "Filipe disse: se acreditas de todo o coração, claro que
podes. E (o outro), respondendo, disse: acredito que Jesus Cristo é o Filho de
Deus. Mandou parar o carro e desceram ambos até à água, Filipe e o eunuco, e
baptizou-o. Quando ambos regressavam, o Espírito do Senhor arrebatou Filipe e o
eunuco nunca mais o viu, continuando alegre o seu caminho" (ibid, 37-39).
A inclusão nas Escrituras desse episódio do eunuco
"alegre" é utilizada pelos movimentos gay cristãos como prova de a
Igreja primitiva ter aceitado sem quaisquer problemas o baptismo dos
homossexuais. Na nossa opinião e na de vários estudiosos mais autorizados, a
questão é muito mais simples. A reviravolta doutrinal que o gesto de Filipe
produziu em Jerusalém não se deveu tanto ao facto de o convertido se tratar de
um eunuco, mas ao facto de ser um gentio, ou seja, um estrangeiro. O
evangelista Lucas, autor dos Actos dos Apóstolos, não parece interessar-se
especialmente pela tendência sexual do viajante, que menciona apenas para
apresentar a personagem, nem na sua nacionalidade ou no seu cargo de
intendente. Por outro lado, o apóstolo de Betsaida, ao dar o baptismo a um
etíope, toma uma posição activa numa das principais controvérsias que ocupava
na época os pais do cristianismo: seria a mensagem de Jesus Cristo apenas uma
variante renovadora da tradição mosaica ou uma nova religião independente e
ecuménica, que transcendia o âmbito do judaísmo? A resposta estava nas mãos do
santo que, nessa altura, se dedicava a prejudicar os cristãos.
TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Editorial
Estampa, 2006. p. 86-89.
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