A Última Ceia.
Leonardo da Vinci
É difícil apreciar retrospectivamente a fé incondicional que, no imediato pós-guerra, a maioria das pessoas depositava nos pilares da sociedade e palpável sentimento de choque pessoal e coletivo à medida que, uma após outra, as instituições eram desmascaradas como hipócritas, egoístas e corruptas. [...]
[...]
Enquanto a geração do pós-guerra se nauseava com a visão da velha ordem tentando calar o mundo, a anterior com certeza se consternava com as traquinagens de seus filhos - o desdém pelas lutas dos mais velhos, a alegre profanação de seus ícones e a suposição fácil de que a riqueza caía do céu. Um dos objetos cênicos mais importantes da peça What the Butler Saw, de Joe Orton, que lotou os teatros londrinos em 1969, era um jarro contendo o pênis conservado de Winston Churchill. Tal iconoclasmo se estendia a tudo que fosse antigo e venerável em se tratando de arte, cultura, educação, edifícios públicos, políticos, generais etc. Era como se os pecados do passado fossem tão grandes que só a faxina em regra e a fumigação da sociedade pudessem redimi-los. Era preciso jogar tudo fora para fazer outra vez.
Essa revolução social coincidiu com o súbito aumento da riqueza, particularmente na Europa Ocidental (os Estados Unidos haviam experimentado esse efeito na década de 1950). O desdém pela autoridade e o desejo de gratificação instantânea foram acicatados pela imensa quantidade de coisas novas e baratas subitamente disponíveis a todos - discos, automóveis, roupas, rádios transistores, máquinas fotográficas, telefones, revistas coloridas, jornais e, acima de tudo, a televisão.
A tecnologia dos anos 1960 não apenas proporcionou um conjunto de experiências melhor, mais colorido e mais interessante, como foi também um meio de evasão de uma sociedade comunal, harmônica e colaborativa. A família já não precisava se reunir à noite, ao redor da lareira, para "criar a sua própria diversão" [...] Com o aquecimento central e as vitrolas e rádios portáteis, cada cômodo da casa podia agora ser usado como um centro de entretenimento privado. De gélidos dormitórios em que só se entrava quando já era noite, os quartos dos adolescentes foram transformados em cálidos refúgios repletos de dispositivos de música, fotografia e emoções provenientes do mundo inteiro. A comunhão familiar foi trocada pela busca da gratificação individual e das novidades da experiência coletiva a distância. Mais tecnologia gerava mais produção e maior poder de compra, tornando as coisas cada vez mais baratas e acessíveis.
Em meados da década, o ardente desejo de ganhar e gastar dinheiro começou a arrefecer na mente de uma parte da juventude recém-liberada. A contracultura gerada em oposição à Guerra do Vietnã começou a virar as costas ao consumismo e ao individualismo e a buscar um novo tipo de comunhão e espiritualidade. [...] a contracultura não tinha muita chance contra os batalhões do mundo comercial e as alegrias mais imediatas de comprar e possuir. O apelo do movimento hippie por uma nova espiritualidade em face do consumismo desenfreado caiu em ouvidos moucos. Nós escolhemos comprar e é o que temos feito desde então. [...]
Essa combinação de consumismo, prosperidade material e desconfiança na autoridade estabelecida nos trouxe uma relação problemática com o nosso passado. É como se tivéssemos ganhado de presente as chaves da caixa-forte junto com o conhecimento de onde proveio o butim. Queremos desfrutar a nossa riqueza, mas também saber como foi construído o nosso mundo - e nos perturbamos com as respostas. Relatos da exploração assassina do restante da humanidade, do esmagamento de outras culturas, do genocídio de nativos por cobiça de suas terras - tudo isso foi absorvido por uma geração cuja desconfiança da ordem estabelecida a preparou para o pior. E o processo continua, inalterável. O genocídio dos quebecois nativos, o financiamento da revolução industrial por meio do tráfico de escravos, a tortura dos prisioneiros argelinos pelo exército francês, os maus-tratos de iraquianos na prisão de Abu Gharib - a cada semana uma nova revelação se soma ao que já sabemos, confirmando as nossas piores suspeitas. [...] Nosso passado guarda histórias individuais de bondade e salvação que, no entanto, só servem para reforçar o vazio moral do mundo em que essas histórias se passam. Na verdade, todo ato heroico engendra a suspeita de motivações ocultas [...]
Mas o que mais influenciou, talvez, a mudança da nossa ideia de civilização foi a crescente desilusão com a mais poderosa de todas as crenças ocidentais - a ideia de progresso. Nos últimos sessenta anos, os países do Ocidente estiveram em paz uns com os outros e seus cidadãos se tornaram cada vez mais prósperos. Os desenvolvimentos científicos e tecnológicos proporcionaram facilidades de comunicação, comodidades diversas e a expectativa de uma vida mias longa e livre de doenças debilitantes. A legislação incentivou e refletiu uma crescente tolerância para com a diversidade de raças, gêneros e modos de vida. Mas, ao mesmo tempo que essas conveniências tornaram a nossa vida tecnicamente mais confortável, começamos também a entender melhor a natureza ilusória dos nossos ganhos. A degradação do ambiente natural, a destruição da família e das redes comunitárias, o surgimento de novas doenças, como a Aids, a obesidade e as doenças mentais cada vez mais disseminadas entre os jovens, o aumento persistente da drogadicção, a crescente disparidade entre ricos e pobres no Ocidente e entre o Ocidente e o resto do mundo, as incertezas da economia globalizada, tudo isso são claros alertas de que o termo progresso deve ser bastante relativizado. Certos aspectos da prosperidade econômica afetam de maneira ainda mais insidiosa a nossa vida cotidiana. Nas últimas décadas, a economia e a gestão de negócios têm sido aplicadas a todas as áreas da vida. Os governos, as escolas, as universidades, a política habitacional e os hospitais não são os únicos a se sujeitar a uma espécie de tecnogestão [...]; nós mesmos somos continuamente exortados a pensar em nossas vidas como um investimento a longo prazo. Devemos empenhar dinheiro e esforços em nossa educação para ganhar cada vez mais no futuro (e contribuir para a economia nacional) e trabalhar sem nunca perder de vista a necessidade de poupar para a velhice. Foram necessárias décadas de prosperidade econômica para que percebêssemos os custos da sua eficiência. Hoje, o que vislumbramos para os nossos filhos é uma vida inteira de trabalho incessante sem as compensações da vida comunitária e da relação com o mundo natural que pudemos, em nosso tempo, desfrutar. (Continua no próximo post)
OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 23-7.
Essa combinação de consumismo, prosperidade material e desconfiança na autoridade estabelecida nos trouxe uma relação problemática com o nosso passado. É como se tivéssemos ganhado de presente as chaves da caixa-forte junto com o conhecimento de onde proveio o butim. Queremos desfrutar a nossa riqueza, mas também saber como foi construído o nosso mundo - e nos perturbamos com as respostas. Relatos da exploração assassina do restante da humanidade, do esmagamento de outras culturas, do genocídio de nativos por cobiça de suas terras - tudo isso foi absorvido por uma geração cuja desconfiança da ordem estabelecida a preparou para o pior. E o processo continua, inalterável. O genocídio dos quebecois nativos, o financiamento da revolução industrial por meio do tráfico de escravos, a tortura dos prisioneiros argelinos pelo exército francês, os maus-tratos de iraquianos na prisão de Abu Gharib - a cada semana uma nova revelação se soma ao que já sabemos, confirmando as nossas piores suspeitas. [...] Nosso passado guarda histórias individuais de bondade e salvação que, no entanto, só servem para reforçar o vazio moral do mundo em que essas histórias se passam. Na verdade, todo ato heroico engendra a suspeita de motivações ocultas [...]
Mas o que mais influenciou, talvez, a mudança da nossa ideia de civilização foi a crescente desilusão com a mais poderosa de todas as crenças ocidentais - a ideia de progresso. Nos últimos sessenta anos, os países do Ocidente estiveram em paz uns com os outros e seus cidadãos se tornaram cada vez mais prósperos. Os desenvolvimentos científicos e tecnológicos proporcionaram facilidades de comunicação, comodidades diversas e a expectativa de uma vida mias longa e livre de doenças debilitantes. A legislação incentivou e refletiu uma crescente tolerância para com a diversidade de raças, gêneros e modos de vida. Mas, ao mesmo tempo que essas conveniências tornaram a nossa vida tecnicamente mais confortável, começamos também a entender melhor a natureza ilusória dos nossos ganhos. A degradação do ambiente natural, a destruição da família e das redes comunitárias, o surgimento de novas doenças, como a Aids, a obesidade e as doenças mentais cada vez mais disseminadas entre os jovens, o aumento persistente da drogadicção, a crescente disparidade entre ricos e pobres no Ocidente e entre o Ocidente e o resto do mundo, as incertezas da economia globalizada, tudo isso são claros alertas de que o termo progresso deve ser bastante relativizado. Certos aspectos da prosperidade econômica afetam de maneira ainda mais insidiosa a nossa vida cotidiana. Nas últimas décadas, a economia e a gestão de negócios têm sido aplicadas a todas as áreas da vida. Os governos, as escolas, as universidades, a política habitacional e os hospitais não são os únicos a se sujeitar a uma espécie de tecnogestão [...]; nós mesmos somos continuamente exortados a pensar em nossas vidas como um investimento a longo prazo. Devemos empenhar dinheiro e esforços em nossa educação para ganhar cada vez mais no futuro (e contribuir para a economia nacional) e trabalhar sem nunca perder de vista a necessidade de poupar para a velhice. Foram necessárias décadas de prosperidade econômica para que percebêssemos os custos da sua eficiência. Hoje, o que vislumbramos para os nossos filhos é uma vida inteira de trabalho incessante sem as compensações da vida comunitária e da relação com o mundo natural que pudemos, em nosso tempo, desfrutar. (Continua no próximo post)
OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 23-7.
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