"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 4 de junho de 2017

Civilização IV

Partenon.
Vasily Polenov

As teorias de Freud derrubaram a concepção decimonônica da civilização como uma força benigna e demoliram a noção de progresso humano. Embora controversas e tidas como novidade, suas ideias eram, na verdade, um retorno ao pessimismo radical de Santo Agostinho, o pai da teologia cristã no século V. A doutrina católica afirma que nascemos com os pecados herdados de Adão e Eva. Eles são lavados no batismo, mas a qualquer momento estamos prestes a pecar. As palavras de Santo Agostinho "Levantem-se as barreiras criadas pelas leis e a obscena capacidade que tem o homem de fazer o mal e se entregar à indulgência se manifestará com toda força" poderiam ter sido escritas por Freud, cujas ideias agostinianas sobre a civilização mudaram o foco da sociedade para o indivíduo. Desde então, a mente do indivíduo humano tem sido o foco principal das nossas indagações acerca das questões capitais da guerra, da crueldade, do progresso, do ódio, da criatividade e da destruição.

Historiadores mais convencionais tentaram explicar as convulsões europeias mapeando a ascensão e queda das civilizações mundiais. A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, publicado em 1918, e a primeira parte de Um Estudo da História, de Arnold Toynbee, 1934, inspiravam-se ambos na crença decimonônica de que a história era guiada por leis universais e a tarefa do historiador era mostrar que essas leis se aplicavam a todas as civilizações.

O começo do século XX foi marcado pela chegada de uma nova força bárbara a enfrentar a civilização ocidental - a cultura de massas. Nas décadas de 1920 e 1930, os intelectuais europeus falavam e escreviam, desesperados, sobre o fim da civilização imposto pelas massas urbanas e seus execráveis gostos e hábitos culturais. A civilização só poderia ser preservada por uma pequena elite que produzisse e apreciasse obras de arte além do alcance da maioria. A civilização se tornou, aos olhos de alguns, território exclusivo de uma minoria.

Era de esperar que a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto e o Terror stalinista tivessem liquidado, de uma vez por todas, qualquer ideia de progresso humano e dos efeitos benéficos da civilização. Na verdade, justo o contrário aconteceu. Os horrores do nazismo, embora nos tenham levado a questionar a nossa humanidade, deram um novo ímpeto à crença de que os humanos podiam e deviam encontrar o caminho para um mundo melhor. Encorajados pela derrota do nazismo e ávidos por acreditar num mundo de coisas boas, durante uma ou duas décadas os ocidentais retornaram às velhas receitas. Cuidando de evitar afirmações banais de progresso, os historiadores da cultura podiam uma vez mais compartilhar o seu deleite com a "grandeza" dos artistas e filósofos e a beleza das pinturas, afrescos e palácios sem terem necessidade de se perguntar a que preço haviam sido comprados. Ao dar à sua série televisiva de 1969 sobre a arte europeia o título Civilização, Keneth Clark assumiu como seus verdadeiros produtos os grandes artistas e seus magníficos artefatos, desviando deliberadamente a atenção da guerra e do genocídio. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 17-8.

Nenhum comentário:

Postar um comentário