Cabeça.
Amedeo Modigliani
Os ataques de 11 de setembro de 2001 e seus desdobramentos impuseram renovadas pressões sobre a ideia confortável de que a vida dos cidadãos ocidentais podia melhorar indefinidamente. O perigo de novos ataques, as restrições às liberdades civis, as alegações em prol da tortura, a imensa superioridade militar de um país sobre todos os outros, o flerte com o uso prático de armas nucleares e as fissuras entre os países ocidentais e no interior deles em torno de questões como a "guerra preemptiva" têm gerado preocupações com a aparente fragilidade das instituições que se supõe serem os esteios dos valores ocidentais. Quem conhece a história dos valores democráticos há de lembrar o quão facilmente eles se desintegraram, nas décadas de 1920 e 1930, na imensa maioria dos países. Estamos começando a nos perguntar se a paz e a prosperidade das seis décadas que nos separam de 1945 são o produto da aplicação resoluta dos valores liberais ou apenas uma indulgência propiciada pela prosperidade contínua. Estaria o esmaecimento da lembrança da Segunda Guerra Mundial propiciando o ressurgimento da guerra como instrumento de política?
Onde, então, nessa nova visão do mundo, haveremos de colocar a arte, joia da coroa da nossa civilização? O que pensar quando já não cremos na confortante certeza de Kenneth Clark de que a "grande" arte é a manifestação suprema da civilização? Teria a predominância e ubiquidade das formas de arte popular, como a música pop, o cinema e a televisão, tornado redundante a chamada "grande arte"? Se a pintura, a escultura e a literatura parecem sempre inclinadas a criticar, ridicularizar e dar as costas aos valores predominantes da sociedade, em que sentido poderiam ser, se é que já foram um dia, a celebração da civilização?
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A história, investigação e interpretação do passado baseada em evidências, é também um conceito peculiar ao Ocidente [...] a história depende dos pontos de vista do historiador e do próprio público leitor, cujos interesses influenciam os rumos da pesquisa e do consumo. Todavia, a despeito da recente expansão dos campos de interesse e das abordagens, a história é ainda escrita pelos vencedores. [...] A história do Ocidente escrita por um viciado em drogas condenado a quarenta anos de prisão na Califórnia depois de roubar, pela terceira vez, uma barra de chocolate ou por um lavrador que nunca saiu da sua aldeia na Galícia seria bastante diferente daquelas com as quais estamos acostumados. Tal documento nunca será produzido, tampouco é nosso desejo que exista, mas devemos estar cientes da sua ausência.
O mesmo se aplica à oportunidade da história. Wordsworth disse que a poesia "tem origem na emoção tranquilamente rememorada". A história, também, é escrita depois do fragor da batalha. Nós tampouco temos histórias da civilização ocidental escritas em Oradour-sur-Glane, em Auschiwitz-1944 nem no campo de trabalhos forçados de Kolyma. Como seria uma história cujo ponto de referência - o presente - fosse o portal do inferno? Nunca saberemos. Embora tenhamos relatos pessoais dos sobreviventes, a história não é escrita nesses momentos nem nesses lugares.
A história é também, como disse Harold Wilson a propóstio da política, "a arte do possível". Tudo o que é escrito ou dito pelos historiadores depende, em última instância, de provas materiais e, principalmente, de registros escritos. Sociedades e culturas que não tinham língua escrita estão virtualmente fora do nosso alcance. [...]
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A história é seletiva em relação ao ponto de vista, formação e posição social do historiador, ao momento em que é escrita, à disponibilidade de documentos, à conexão com os grandes temas do passado e à possibilidade de novas revelações e descobertas. Se não há muito que possamos fazer para mudar o curso da nossa jornada através do passado, devemos ao menos estar conscientes das forças invisíveis que guiam os nossos passos.
OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 27-30.
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