O gaulês moribundo (detalhe).
Escultura romana do século I a.C.
Escultor desconhecido
As duas ideias dominantes de civilização - a "grande tradição" do século XIX e a domesticação freudiana, com reverberações da teologia cristã, da fera interior - permaneceram conosco no início do novo século. A imagem de um fio dourado civilizacional emitindo um brilho de luz em meio às sombras da barbárie provou ser, para os historiadores, um símbolo poderoso e duradouro. Em 1999, Christian Meier escreveu que o Estreito de Salamina, onde os atenienses derrotaram a frota persa, foi "o buraco da agulha pelo qual teve de passar a história mundial"; Kenneth Clark se referiu ao período em que o cristianismo "sobreviveu agarrado a lugares como Skellig Michael, um pico rochoso a 30 km da costa irlandesa", como a civilização atravessando "o esmalte dos nossos dentes". Em momentos como esse, o fio dourado se esticou de maneira alarmante, mas não se rompeu. Nossa ligação com a grande tradição foi assim tanto preservada quanto exemplificada.
Também os historiadores invocaram as teorias de Freud para explicar comportamentos brutais como manifestações da fera interior que rompe, de tempos em tempos, a frágil barreira da civilização. Numa recente discussão sobre a Revolução Russa de 1917 e a guerra civil subsequente, Orlando Figes escreveu: "Era como se toda a violência dos anos precedentes tivesse removido o fino verniz de civilização que cobria as relações humanas, deixando expostos os instintos zoológicos primitivos do homem. As pessoas começaram a gostar do cheiro de sangue."
Mas não foram só os historiadores que fizeram uso da noção de fera interior. Artistas, cineastas e, particularmente, escritores de novelas policiais são enamorados da visão freudiana de uma humanidade brutal sob controle das forças civilizatórias. Como comentou P.D. James, os escritores de novelas policiais "demonstram o quão frágeis são as pontes que construímos sobre o abismo do caos social e psicológico".
Nas últimas décadas, esses conceitos e as crenças que os sustentam parecem cada vez mais incertos. Nossas maneiras de estudar o passado mudaram radicalmente, e os modos tradicionais de aprender a história, tão brilhantemente satirizados, já em 1930, por Sellar e Yeatman em seu 1066 and All That, deram lugar a uma abordagem muito mais variada e rica do passado. Nós hoje consumimos história com crescente entusiasmo em livros, filmes, televisão e rádio, mas não queremos que nos digam sumariamente que Napoleão foi bom para a França, porém ruim para a Europa, que Stalin era um monstro e que Elizabeth I foi uma "grande" rainha. Queremos receber informação, narrativas, documentos e testemunhos do passado para então formar as nossas próprias ideias. Sabemos que os acontecimentos nunca são vistos com olhos inocentes e que o preconceito do historiador é a influência dominante na forma como a história é contada. Os historiadores responderam abandonando sua pretensão à imparcialidade e à objetividade; em vez de nos dar somente os resultados, eles agora nos mostram como trabalham e compartilham seus métodos, dificuldades, incertezas e entusiasmos. Num tal ambiente, a renovação da tradição dos "grandes homens" por Kenneth Clark perdeu credibilidade. O que em 1969 tinha o aspecto de uma ousada inovação parece hoje o último suspiro de uma elite aristocrática. (Continua no próximo post)
OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 18-20.
Nenhum comentário:
Postar um comentário