A criação de Adão.
(Detalhe do teto da Capela Sistina)
Michelangelo
Se a ideia da "grande tradição" foi posta de lado, o que dizer da retomada, por Freud, da crença agostiniana de que a civilização domestica a fera interior da psique humana? O uso, por Freud, do comportamento do homem primitivo em apoio às suas teorias se revelou uma faca de dois gumes - profícuo no curto prazo, mas vulnerável à investigação sistemática, a qual demonstrou que a maior parte da antropologia eclética de Freud estava mal orientada. A promoção freudiana do inconsciente sofreu não porque o conceito estivesse errado, mas porque ele usou sua ideia do conteúdo do inconsciente para explicar todos os aspectos da vida humana. E embora a psicanálise tenha se mostrado popular entre pessoas moderadamente neuróticas e até aparentemente normais, embora bem de vida, a sua incapacidade de curar problemas mentais sérios prejudicou inevitavelmente a credibilidade das teorias freudianas da mente.
Se, no entanto, colocamos em dúvida as ideias de Freud a respeito da civilização, como explicar a brutalidade das guerras do século XX que ele parecia ter explicado com tanto sucesso? Embora a teoria da "fera interior" tenha auferido considerável prestígio com a carnificina da Primeira Guerra Mundial, uma nova abordagem da psicologia da guerra foi desenvolvida por historiadores recentes. John Keegan afirmou que, entre a derrota de Napoelão em 1815 e a eclosão da Primeira Guerra em 1914, a Europa foi tomando progressivamente o aspecto de um vasto acampamento militar. Não havia nenhuma razão geopolítica para isso, dado que em 1815 a Europa tinha em perspectiva um longo período de relativa paz. Cerca de um século depois, no entanto, "(...) às vésperas da Primeira Guerra quase todos os europeus aptos ao serviço traziam entre seus documentos uma carteira de identidade militar mostrando-lhe quando e onde se apresentar em caso de mobilização geral (...) no começo de julho de 1914 havia cerca de 4 milhões de europeus fardados; no fim de agosto eram 20 milhões e dezenas de milhares já haviam sido mortos".
A cultura militar que vicejava paralelamente à sociedade civil se tornara imensamente poderosa e a guerra surgia como uma resposta automática às dificuldades políticas. Quando, finalmente, as grandes potências foram às vias de fato em 1914, a disponibilidade de milhões de homens equipados com armas pessoais e de artilharia feitas com aço de alta qualidade significava inevitavelmente a destruição em massa de vidas humanas. Keegan mostrou também que o ethos do combate glorioso, da morte digna na batalha e da ânsia de destruir o inimigo faz parte de uma ideia peculiarmente ocidental da guerra - um conflito tão sangrento não teria surgido em outras culturas. Do ponto de vista dos historiadores, as guerras mundiais não foram um retorno da humanidade europeia a um estado primitivo de barbarismo, mas provieram de uma cultura deliberadamente cultivada e promovida durante todo o século anterior.
Esses novos modos de ver a história refletem o nosso entendimento modificado do mundo. Todavia, não apenas eludem a questão "O que é civilização?", como a tornam cada vez mais difícil de responder. A nossa visão de mundo nos apresenta algumas sérias dificuldades. Passamos a acreditar, por exemplo, que as sociedades ditas primitivas têm o direito de continuar existindo tal como são. Que dizer, então, de uma civilização que as destruiu rotineiramente com base em justificativas morais, religiosas e históricas? Se a nossa civilização contém a nossa história e é também a expressão dos nossos valores permanentes, o que nos resta quando esses se nos afiguram tão obviamente em conflito?
Podemos começar a responder a tais perguntas examinando em que nós, a geração atual, somos diferentes de nossos antepassados e por que temos uma visão de mundo tão diferente. [...] Quais são, então, as características particulares do presente a influenciar a visão que temos da nossa civilização?
Nas décadas de 1930 e 1940 era perfeitamente claro o que representavam a sociedade ocidental e a civilização ocidentais. Para um socialista como para um conservador, a civilização era tudo o que Hitler, Mussolini e o Japão imperial estavam tentando destruir, e sua tarefa era, indiscutivelmente, preservar-se. A crença no deus cristão deu lugar à crença no progresso até ser substituída pela urgente necessidade de derrotar o fascismo. Os que lutaram "do lado errado" também o viram claramente quando a guerra terminou. A tarefa imediata dos anos do pós-guerra não era reconstruir a sociedade preexistente - era criar um novo começo. Não obstante, a guerra cobrou daqueles que a viveram um imenso preço em energia emocional e cultural. Depois de um breve flerte com o radicalismo, o Ocidente se aquietou na década de 1950 como uma sociedade política e culturalmente conservadora, ávida por agarrar-se àquilo que já possuía, estática e temente a mudanças.
Os anos 1960 foram, em parte, uma reação contra a atrofia da sociedade subsequente à Segunda Guerra Mundial. A geração que viveu a guerra se sentia aliviada por haver sobrevivido e tido a chance de construir um mundo próspero e pacífico, mas seus filhos e filhas que chegavam à idade adulta queriam algo mais. O anterior sentimento de que fora necessário lutar para preservar a civilização se transformou na nova crença de que fora precisamente a sociedade existente, com suas hierarquias, sua rigidez, seu respeito pela autoridade, sua mentalidade de "o doutor é quem sabe", a responsável pela queda da Europa no turbilhão do conflito. Em Nuremberg, diante de um mundo que se perguntava como foi que cidadãos de um país civilizado como a Alemanha puderam cometer tais horrores, o tedioso bordão era: "Eu só estava cumprindo ordens." Essa frase cruciante se tornou o inverso do lema da nova geração - de agora em diante, ninguém mais devia dar nem receber ordens. A Europa se livrava do militarismo que assombrara o continente durante mais de 150 anos. (Continua no próximo post)
OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 21-3.
A cultura militar que vicejava paralelamente à sociedade civil se tornara imensamente poderosa e a guerra surgia como uma resposta automática às dificuldades políticas. Quando, finalmente, as grandes potências foram às vias de fato em 1914, a disponibilidade de milhões de homens equipados com armas pessoais e de artilharia feitas com aço de alta qualidade significava inevitavelmente a destruição em massa de vidas humanas. Keegan mostrou também que o ethos do combate glorioso, da morte digna na batalha e da ânsia de destruir o inimigo faz parte de uma ideia peculiarmente ocidental da guerra - um conflito tão sangrento não teria surgido em outras culturas. Do ponto de vista dos historiadores, as guerras mundiais não foram um retorno da humanidade europeia a um estado primitivo de barbarismo, mas provieram de uma cultura deliberadamente cultivada e promovida durante todo o século anterior.
Esses novos modos de ver a história refletem o nosso entendimento modificado do mundo. Todavia, não apenas eludem a questão "O que é civilização?", como a tornam cada vez mais difícil de responder. A nossa visão de mundo nos apresenta algumas sérias dificuldades. Passamos a acreditar, por exemplo, que as sociedades ditas primitivas têm o direito de continuar existindo tal como são. Que dizer, então, de uma civilização que as destruiu rotineiramente com base em justificativas morais, religiosas e históricas? Se a nossa civilização contém a nossa história e é também a expressão dos nossos valores permanentes, o que nos resta quando esses se nos afiguram tão obviamente em conflito?
Podemos começar a responder a tais perguntas examinando em que nós, a geração atual, somos diferentes de nossos antepassados e por que temos uma visão de mundo tão diferente. [...] Quais são, então, as características particulares do presente a influenciar a visão que temos da nossa civilização?
Nas décadas de 1930 e 1940 era perfeitamente claro o que representavam a sociedade ocidental e a civilização ocidentais. Para um socialista como para um conservador, a civilização era tudo o que Hitler, Mussolini e o Japão imperial estavam tentando destruir, e sua tarefa era, indiscutivelmente, preservar-se. A crença no deus cristão deu lugar à crença no progresso até ser substituída pela urgente necessidade de derrotar o fascismo. Os que lutaram "do lado errado" também o viram claramente quando a guerra terminou. A tarefa imediata dos anos do pós-guerra não era reconstruir a sociedade preexistente - era criar um novo começo. Não obstante, a guerra cobrou daqueles que a viveram um imenso preço em energia emocional e cultural. Depois de um breve flerte com o radicalismo, o Ocidente se aquietou na década de 1950 como uma sociedade política e culturalmente conservadora, ávida por agarrar-se àquilo que já possuía, estática e temente a mudanças.
Os anos 1960 foram, em parte, uma reação contra a atrofia da sociedade subsequente à Segunda Guerra Mundial. A geração que viveu a guerra se sentia aliviada por haver sobrevivido e tido a chance de construir um mundo próspero e pacífico, mas seus filhos e filhas que chegavam à idade adulta queriam algo mais. O anterior sentimento de que fora necessário lutar para preservar a civilização se transformou na nova crença de que fora precisamente a sociedade existente, com suas hierarquias, sua rigidez, seu respeito pela autoridade, sua mentalidade de "o doutor é quem sabe", a responsável pela queda da Europa no turbilhão do conflito. Em Nuremberg, diante de um mundo que se perguntava como foi que cidadãos de um país civilizado como a Alemanha puderam cometer tais horrores, o tedioso bordão era: "Eu só estava cumprindo ordens." Essa frase cruciante se tornou o inverso do lema da nova geração - de agora em diante, ninguém mais devia dar nem receber ordens. A Europa se livrava do militarismo que assombrara o continente durante mais de 150 anos. (Continua no próximo post)
OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 21-3.
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