"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O século XIV: uma época de adversidades

Ao iniciar-se o século XIV, a cristandade latina já havia atravessado mais de 250 anos de crescimento. No nível econômico, a produção agrícola expandira-se, o comércio e a vida urbana renasceram e a população aumentara. No nível político, os reis se haviam tornado mais poderosos, impondo maior ordem e segurança a grandes áreas. No nível religioso, o papado havia demonstrado seu vigor como líder espiritual da cristandade e o clero fora reformado. No nível cultural, forjara-se uma visão de mundo unificada, fundindo a fé com a razão.

Porém, na Baixa Idade Média (século XIV, aproximadamente), a cristandade latina foi afligida por sérios problemas. Os aumentos anteriores da produção agrícola não tiveram continuidade. O uso limitado de adubos e o pouco conhecimento sobre conservação esgotaram o solo. De 1301 a 1314, houve uma escassez generalizada de alimentos; de 1315 a 1317, fome e subnutrição assolaram a Europa, estendendo-se por todo o século.

Agravando ainda mais a situação criada pela crise econômica, houve também a Peste Negra, ou peste bubônica. A doença, levada pelas pulgas dos ratos pardos, surgiu provavelmente na Mongólia em 1331-32. Dali passou à Rússia. Levada de volta dos portos do mar Negro, a peste atingiu a Sicília em 1347. Alastrando-se rapidamente por grande parte da Europa, atingiu uma população já em declínio e subalimentada. A primeira crise durou até 1351, e outros surtos graves ocorreram em décadas posteriores. As cidades congestionadas tiveram os mais altos índices de mortalidade. Cerca de 20 milhões de pessoas, talvez – aproximadamente de um terço da população da Europa -, pereceram no pior desastre natural da história conhecida.


Os flagelantes de Tournai em 1349, Crônicas de Aegidius Li Muisis

Tomadas de pânico as massas foram arrastadas para a devassidão, ilegalidade e formas arrebatadas de vida religiosa. Bandos de flagelantes se organizaram, indo de uma região a outra vergastando-se mutuamente com varas e chicotes, numa tentativa desesperada de agradar a Deus – que acreditavam tê-los amaldiçoado com a peste. As formas de arte concentraram-se com cenas mórbidas de carne em decomposição, tumbas abertas cheias de cadáveres corroídos por vermes, danças da morte e tormentos do inferno. Por vezes, essa histeria voltava-se contra os judeus, acusados de terem causado a peste envenenando os poços. Ocorreram então massacres terríveis de judeus, apesar dos apelos do papado.

Os milhões de mortes afundaram a produção de alimentos e mercadorias, levando alguns preços a subirem acentuadamente. As tensões econômicas e sociais, algumas delas anteriores à peste, explodiram em rebeliões. Cada rebelião tinha uma causa própria específica, mas os levantes no campo caracterizaram-se por um padrão geral. Quando os reis e senhores, quebrando as relações sociais baseadas no costume, impuseram novos e onerosos regulamentos, os camponeses ergueram-se em defesa dos direitos tradicionais.

Em 1323, os camponeses livres de Flandres, cuja situação havia melhorado nas décadas anteriores, enfureceram-se com a tentativa dos nobres de restabelecer velhas obrigações senhoriais. Sua revolta durou cinco sangrentos anos. Em 1358, os camponeses franceses pegaram em armas em protesto contra os saques dos campos pelos soldados. Cerca de 20 000 camponeses morreram no levante conhecido como Jacquerie. Em 1381, os camponeses ingleses revoltaram-se contra a legislação que os prendia à terra e impunha novos tributos. Como as revoltas em Flandres e na França, o levante inglês também fracassou. Para a aristocracia fundiária, os camponeses eram pecadores que combatiam um sistema social ordenado por Deus. Possuindo superioridade militar, a nobreza subjugou os revoltosos, às vezes com violenta crueldade.

A inquietação atingiu também as cidades. Os assalariados de Florença (1378), os tecelões de Gand (1382) e os pobres de Paris (1382) rebelaram-se contra as oligarquias governantes. Essas revoltas foram iniciadas, em geral, não pelos mais pobres e mais sacrificados, mas pelos que haviam feito certas conquistas e ansiavam por mais. Como os levantes camponeses, as rebeliões dos pobres urbanos também foram esmagadas.

Também fizeram parte desse período de adversidades, a série de conflitos conhecida como Guerra dos Cem Anos. Como os reis ingleses haviam governado partes da França, os conflitos entre as duas monarquias eram comuns. No início da guerra, os ingleses infligiram terríveis derrotas aos cavaleiros franceses nas batalhas de Crécy (1346) e Poitiers (1356). Usando arcos de mão, que lhes permitiam disparar flechas rapidamente, os arqueiros ingleses destruíram ondas sucessivas da cavalaria francesa. A guerra continuou de maneira intermitente durante todo o século XIV. Nos períodos de trégua, grupos de soldados ociosos vagavam pelos campos franceses matando e roubando – ações que precipitaram a Jacquerie.

Depois da batalha de Azincourt (1415), vencida sob o comando de Henrique V, os ingleses passaram a controlar a maior parte do norte da França. A Inglaterra parecia estar na iminência de conquistar a França e unir os dois países sob a mesma coroa. Nesse momento crucial da história francesa, uma jovem camponesa analfabeta, Joana D’Arc (1412-1431), ajudou a salvar a França. Acreditando que Deus lhe havia mandado expulsar os ingleses, Joana reuniu as desmoralizadas tropas francesas, liderando-as em batalha. Em 1429, libertou a cidade sitiada de Orléans. Aprisionada pelos ingleses, foi condenada como herege e feiticeira, em 1431, por um tribunal religioso escolhido a dedo. Morreu queimada na fogueira. Inspirado pela morte de Joana, o exército francês expulsou os ingleses de todo o território francês, com exceção do porto de Calais.

Durante a Guerra dos Cem Anos, os reis franceses impuseram novos tributos, que aumentaram substancialmente suas rendas. Esses recursos proporcionaram-lhes meios de organizar um exército profissional de soldados bem pagos e leais. Evocando um sentimento de orgulho e unidade no povo francês, a guerra também contribuiu para a crescente, mas ainda incompleta, unidade nacional. Também os ingleses saíram do conflito com um senso de solidariedade maior. Mas a guerra teve conseqüências terríveis para os camponeses franceses, milhares de agricultores foram mortos e campos valiosos destruídos pelos exércitos ingleses e grupos de mercenários assaltantes. Num prodigioso avanço, a Guerra dos Cem Anos testemunhou, nos estágios finais, a utilização da pólvora e de artilharia pesada.


PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 199-203.

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