[...] todas as fontes da história do território hoje conhecido como Brasil, antes da chegada dos europeus, são arqueológicas - ou seja, compostas de registros materiais deixados pelos homens e parcialmente preservados dos processos naturais de degradação. Os ossos humanos informam sobre idade, sexo, características físicas tanto individuais quanto diagnósticas do tipo de população (evita-se o termo raça), posturas frequentes e tipos de esforços mecânicos, doenças e alimentação. Os restos de animais pequenos fornecem dados sobre o ambiente local (umidade, temperatura); os de animais caçados, sobre as escolhas e os hábitos de preparo alimentar. Os vegetais (raramente preservados) evidenciam as técnicas de coleta e/ou de cultivo, e as modificações genéticas sob domesticação.
Cerâmica marajoara: urna funerária. Ca. 400-1400.
Os instrumentos de pedra (mais facilmente preservados, mas nem por isso os mais comuns na época pré-histórica), de osso, de cerâmica ou artefatos vegetais informam sobre as tecnologias conhecidas pelo grupo que os fabricou, mas também as marcas específicas que diferenciavam a produção de um grupo com referência aos vizinhos (por vezes até se pode reconhecer o "jeito" de um indivíduo). Os vestígios de uso nos artefatos (estudados no microscópio ou a partir de análises químicas) podem indicar os produtos fabricados ou preparados. Os grafismos (pinturas, gravuras) deixados em paredões (a chamada arte rupestre) ou em pequenos objetos, assim como as esculturas e modelagens, permitem abordar a esfera do pensamento simbólico por meio de temas, formas e ritmos privilegiados pelas populações.
Por outro lado, além dos vestígios "culturais", importam os vestígios "naturais" que informam sobre o paleo-ambiente: clima, vegetação, fauna e topografia, que mudam ao longo do tempo, influenciando as coletividades humanas. Além disso, não é somente a presença de vestígios que deve ser verificada, mas também a ausência de outros elementos: por exemplo, a exclusão de determinado animal da dieta é tão significativa quanto a presença de outro; a ausência sistemática de ossos de criança num cemitério pode ser tão importante quanto a presença de esqueletos adultos.
Mas a arqueologia não se faz apenas da coleta de objetos isolados. Somente a relação dos vestígios contemporâneos entre si permite reconhecer as estruturas arqueológicas e arriscar uma interpretação da vida quotidiana. Os vestígios encontram-se em conjuntos que denominamos sítios arqueológicos. Estes podem conter vestígios de apenas uma ocupação ou de várias delas. No segundo caso, é necessário tentar separar os restos de cada ocupação (seja esta breve momento ou um período de vários anos), o que se faz com escavações estratigráficas, procurando-se distinguir os estratos sedimentares uns dos outros. Trata-se de um método de aplicação delicada que permite separar objetos mais recentes dos mais antigos, sem tornar possível calcular a idade exata dos estratos considerados. Para se obter uma cronologia mais precisa, devem-se obter datações por métodos físico-químicos. Destacam-se o do radiocarbono (que possibilita, em certas condições, calcular a idade da morte dos seres vivos a partir da radioatividade residual do carbono preservado em carvões vegetais, em ossos ou em conchas) e o da termoluminescência residual em torrões de barro queimado e cacos de cerâmica.
Os sítios arqueológicos não são entidades isoladas, mas elementos dentro da ocupação de um território por uma população. Alguns deles refletem ocupações sazonais, enquanto outros correspondem a habitações de longa duração. Alguns mostram apenas atividades precisas e limitadas (cemitérios, locais de extração de matéria-prima, ateliês de fabricação de instrumentos, locais de preservação de alimentos etc.), enquanto outros guardam vestígios de atividades diversificadas. Uns evidenciam a exploração de zonas baixas (por exemplo, para agricultura ou pesca), enquanto outros correspondem a um uso casual (tal como caça, coleta de determinadas plantas ou realização de rituais). Cada sítio deve ser abordado de uma maneira específica, e nenhum deles apresenta uma visão completa da ocupação do território.
Dessa forma, a prática da arqueologia é extremamente complexa, e o arqueólogo depende da colaboração de vários especialistas (biólogos, geomorfólogos, físicos etc.). Por outro lado, ele dispõe apenas de fragmentos da realidade do passado - sobretudo o lixo, e ainda por cima selecionado pelos agentes de degradação natural. Enfim, o processo de identificação e coleta em campo, bem como a interpretação dos resultados de análise, deve ser submetido a inúmeras críticas: serão os sítios estudados representativos das atividades da população em pauta? Os vestígios apresentados são significativos o bastante para sustentar as interpretações? Será que alguns dos supostos instrumentos podem ter sido produzidos pela natureza? Os carvões encontrados são de origem antrópica ou não? Os vestígios vegetais e ósseos são restos de alimentação humana ou animal? Ou seriam restos de algum animal morto acidentalmente no lugar onde morava? Será que a escavação foi realizada segundo o procedimento correto? Teria havido perturbações estratigráficas não reconhecidas pelo arqueólogo? Ou contaminação das amostras datadas?
Essas dúvidas costumam ser levantadas em função dos argumentos apresentados pelos arqueólogos (sobretudo quando os resultados são inesperados) e da sua credibilidade em geral. Explicam por que vários especialistas têm opiniões divergentes a partir dos mesmos dados presentes numa publicação. A crítica esperada dos pesquisadores por seus pares é a melhor garantia da qualidade das pesquisas futuras. Nas discussões aparecem os limites do trabalho realizado e surgem novas propostas para responder aos questionamentos.
PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 13-17.
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