A exuberante fama de país sensual
esconde em seus bastidores desigualdades de raça, classe e gênero
Por Maria Elvira Diaz-Benítez*
Uma das principais imagens que
surgem quando se pensa no Brasil é uma suposta sexualidade desenfreada. Aqui o
sexo e as sexualidades teriam características próprias, excepcionais, territórios
de proezas e exotismo.
Este é um lado da moeda. Mas
existe outro. A grande da liberação sexual oblitera uma realidade sensível: as
desigualdades na participação democrática efetiva. Hoje, o país presencia um
embate sociopolítico em que as bancadas mais conservadoras, afiliadas a grupos
religiosos, ganham espaço considerável no Congresso, elevando seus gritos de
protesto contra direitos sexuais já conquistados e ameaçando a laicidade do
Estado. Se, por um lado, para o mundo, o Brasil é um lugar de eterno verão,
produtor de um carnaval lascivo, de corpos e prazeres tropicais e com grande
oferta de turismo sexual, por outro, assistimos à eleição de um pastor para a
presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara, apesar de
suas posições polêmicas sobre homossexuais, negros e os direitos das mulheres.
Se todo sexo é político, como afirmou a antropóloga norte-americana Gayle Rubin, a sexualidade brasileira também não é neutra. Ela está envolvida em relações de poder. Evoca aqueles discursos do começo do século XX sobre raça, mestiçagem e o futuro da nação, os métodos eugênicos, a criação das patologias e dos pervertidos sexuais. Em poucas palavras, sexualidade e raça se encontram intimamente ligadas nos imaginários coletivos de brasilidade – que foram construídos pela história, a medicina, a literatura, a criminologia, a religião, a mídia, a pornografia – envolvendo questões de classe e de gênero.
Protesto a favor dos direitos LGBT em frente ao Congresso Nacional, Brasília, 2009.
Foto: Antonio Cruz / ABr
Se todo sexo é político, como afirmou a antropóloga norte-americana Gayle Rubin, a sexualidade brasileira também não é neutra. Ela está envolvida em relações de poder. Evoca aqueles discursos do começo do século XX sobre raça, mestiçagem e o futuro da nação, os métodos eugênicos, a criação das patologias e dos pervertidos sexuais. Em poucas palavras, sexualidade e raça se encontram intimamente ligadas nos imaginários coletivos de brasilidade – que foram construídos pela história, a medicina, a literatura, a criminologia, a religião, a mídia, a pornografia – envolvendo questões de classe e de gênero.
O Brasil é uma chave para se
pensar na sexualização da raça e na racialização do sexo. Foi o primeiro país
na América latina a ter um movimento eugênico organizado. O termo Eugênia foi
criado por Francis Galton, antropólogo, matemático, geógrafo e médico inglês. Seria
o estudo dos agentes que podem melhorar ou degenerar as qualidades raciais de
uma população em gerações futuras. Inspirado na obra maior de seu primo, o biólogo
evolucionista Charles Darwin, A origem
das espécies (1859), Galton acreditava que a espécie humana poderia ser
melhorada evitando-se cruzamentos indesejáveis, isto é, através de uma seleção
artificial. Para os cientistas e seguidores do movimento eugenista europeu, o
Brasil era considerado um país disgênico (degenerado geneticamente) por excelência
e seu futuro estava ameaçado devido ao clima tropical e à população altamente
miscigenada.
Os eugenistas brasileiros
preocupavam-se em aprimorar um país cuja população era pobre e racialmente
muito heterogênea. O tema mobilizava as elites intelectuais. Nina Rodrigues,
desde finais do século XIX, já se mostrava cético ante a possibilidade de
alcançar uma unidade nacional via mestiçagem. Apesar de seus méritos como médico
e primeiro pesquisador da influência africana no Brasil, para ele a
inferioridade do africano estava estabelecida fora de qualquer dúvida científica.
Menos pessimista, o antropólogo João Batista de Lacerda, em 1911, vaticinou que
em um período de três gerações (100 anos) o país conseguiria produzir uma
população de fenótipo branco se continuasse a importar europeus,
miscigenando-os com os nativos de um modo “bem dosado”. Para o historiador
Oliveira Vianna, o “tipo antropológico e racial brasileiro” era o resultado de
uma desordem étnica causada principalmente pelos “typos” africanos. Na obra Casa Grande & Senzala (1933),
Gilberto Freyre contesta o argumento que Oliveira Vianna construiu em Evolução do Povo Brasileiro (1923). Para
o sociólogo pernambucano, a história social brasileira era o produto da
heterogeneidade e dos encontros inter-raciais que “harmonicamente” ocorreram
entre membros das diferentes raças.
Como os seus críticos apontam, em
sua apologia à mestiçagem, Freyre criou uma imagem da história escravista na
qual brancos e negros, escravos e amos e seus filhos mulatos viviam em uma relação
de fraternidade e intimidade. O segredo para essa convivência fraternal seria a
interação sexual, que minguou o despotismo e a opressão característicos do
contexto escravista. Esse mito da “escravidão cordial ou branda”, como é
chamado pelos críticos de Freyre, faz-se mais evidente com a figura do mulato
como elemento mediador. Sua pele mais clara lhe permitiria entrar em um
processo de mobilidade social, transitando entre as raças e conciliando os
extremos. A teoria de Gilberto Freyre é criticada por não considerar que, num
contexto escravista, existe um exercício do poder que recai sobre a sexualidade,
em uma sociedade de relações de gênero e de classe assimétricas.
Os programas eugenistas advogavam
o controle da sexualidade. Em defesa de uma sociedade sadia, em princípios do século
XX, empregaram-se políticas de controle dos hábitos: repressão do ócio e da
vadiagem, do comportamento sexual de mulheres (reprodução, higiene, cuidado com
crianças) e dos homens mediante a religião, a medicina e a política. O cuidado
com a sexualidade masculina estava diretamente relacionado com o
aperfeiçoamento da população: relacionar-se com prostitutas, adquirir doenças
venéreas ou ter sexo homoerótico eram vistos como causas de degeneração. Ganharam
importância visões e práticas relacionadas ao nacionalismo, a modelos
moralistas de família, heterossexualidade, masculinidade, feminilidade e também
normalidade sexual. A função reprodutora do sexo era a pedra institucional de
uma ordem nacional excludente e repressora.
Paralelamente a essas políticas
de depuração racial e sexual, os intelectuais criaram ideais de nação com base
no encontro sexual inter-racial. Se os mulatos eram figuras emblemáticas, o que
dizer especificamente das mulatas?
A figura da mulata encarna o
corpo e a alma do desejo. E foi assim que se converteu em símbolo nacional,
construído pela literatura, a medicina, o carnaval e, mais recentemente, pelas
agências de turismo e os canais televisivos. A categoria da mulata, como disse
a antropóloga Mariza Corrêa, “pode contribuir para questionarmos nossa forma
habitual de tratar seja das relações de raça, seja das relações de gênero”, mas
também as relações de classe, pois essa mulata faz apologia do mundo dos pobres
– os quais, segundo o imaginário social, vivem mais próximos da natureza e dos
instintos. A mulata é, desde o começo do século XX e até hoje, o fio condutor
de um ideário nacional que racializa os desejos sexuais. Mais recentemente, o
mercado do sexo (pornografia, prostituição e turismo) inventou outra figura
racial e de gênero que encarna em seu corpo símbolos de classe e de nação: a
travesti.
Em diversas legendas de filmes
pornográficos, a pobreza, a nacionalidade e o gênero das travestis são vendidos
como algo prodigioso, exótico e simultaneamente esdrúxulo. O contrário também
acontece: o glamour de algumas
travestis ou transexuais destacadas – como a pioneira Roberta Close – é ofertado
como sinônimo da abertura sexual dos brasileiros e de uma sociedade moderna e
bonita, porém, branca.
Terra do fogo, Wilhelm von Gloeden
No Ocidente, historicamente tem
se privilegiado o branco e o heterossexual como paradigmas legítimos e modelos
morais que colocam o outro como subalterno. Daí que exista um vínculo entre
heterossexismo e racismo. Ambos são dispositivos de opressão que se relacionam
e que permitem, por exemplo, pensar que um homem negro é obrigatoriamente macho
e que nos circuitos homossexuais a branquidade é o padrão de beleza hegemônico.
O dispositivo permite também que movimentos de esquerda, como o negro e o
proletário, mesmo sendo revolucionários, conservem em seus valores concepções
homofóbicas, machistas e misóginas, e que as políticas LGBT nem sempre ofereçam
atenção aos fatores de classe e raça, colocando pessoas socialmente diversas em
um mesmo patamar.
Estas são as contradições de um
país onde a sexualidade, vista de fora como libertária, na verdade se
entrecruza com diversas formas de desigualdade.
* Maria Elvira Diaz-Benitz é
professora de Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ.
Maria Elvira Diaz-Benitz. Posições
políticas. In: Revista de História da
Biblioteca Nacional. Ano 8 / Nº 93 / Junho 2013. p. 35-37.
Nenhum comentário:
Postar um comentário