"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 14 de setembro de 2013

Posições politicas: desigualdades de raça, classe e gênero no Brasil

A exuberante fama de país sensual esconde em seus bastidores desigualdades de raça, classe e gênero

Por Maria Elvira Diaz-Benítez*

Uma das principais imagens que surgem quando se pensa no Brasil é uma suposta sexualidade desenfreada. Aqui o sexo e as sexualidades teriam características próprias, excepcionais, territórios de proezas e exotismo.

Este é um lado da moeda. Mas existe outro. A grande da liberação sexual oblitera uma realidade sensível: as desigualdades na participação democrática efetiva. Hoje, o país presencia um embate sociopolítico em que as bancadas mais conservadoras, afiliadas a grupos religiosos, ganham espaço considerável no Congresso, elevando seus gritos de protesto contra direitos sexuais já conquistados e ameaçando a laicidade do Estado. Se, por um lado, para o mundo, o Brasil é um lugar de eterno verão, produtor de um carnaval lascivo, de corpos e prazeres tropicais e com grande oferta de turismo sexual, por outro, assistimos à eleição de um pastor para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara, apesar de suas posições polêmicas sobre homossexuais, negros e os direitos das mulheres.


Protesto a favor dos direitos LGBT em frente ao Congresso Nacional, Brasília, 2009. 
Foto: Antonio Cruz / ABr

Se todo sexo é político, como afirmou a antropóloga norte-americana Gayle Rubin, a sexualidade brasileira também não é neutra. Ela está envolvida em relações de poder. Evoca aqueles discursos do começo do século XX sobre raça, mestiçagem e o futuro da nação, os métodos eugênicos, a criação das patologias e dos pervertidos sexuais. Em poucas palavras, sexualidade e raça se encontram intimamente ligadas nos imaginários coletivos de brasilidade – que foram construídos pela história, a medicina, a literatura, a criminologia, a religião, a mídia, a pornografia – envolvendo questões de classe e de gênero.

O Brasil é uma chave para se pensar na sexualização da raça e na racialização do sexo. Foi o primeiro país na América latina a ter um movimento eugênico organizado. O termo Eugênia foi criado por Francis Galton, antropólogo, matemático, geógrafo e médico inglês. Seria o estudo dos agentes que podem melhorar ou degenerar as qualidades raciais de uma população em gerações futuras. Inspirado na obra maior de seu primo, o biólogo evolucionista Charles Darwin, A origem das espécies (1859), Galton acreditava que a espécie humana poderia ser melhorada evitando-se cruzamentos indesejáveis, isto é, através de uma seleção artificial. Para os cientistas e seguidores do movimento eugenista europeu, o Brasil era considerado um país disgênico (degenerado geneticamente) por excelência e seu futuro estava ameaçado devido ao clima tropical e à população altamente miscigenada.

Os eugenistas brasileiros preocupavam-se em aprimorar um país cuja população era pobre e racialmente muito heterogênea. O tema mobilizava as elites intelectuais. Nina Rodrigues, desde finais do século XIX, já se mostrava cético ante a possibilidade de alcançar uma unidade nacional via mestiçagem. Apesar de seus méritos como médico e primeiro pesquisador da influência africana no Brasil, para ele a inferioridade do africano estava estabelecida fora de qualquer dúvida científica. Menos pessimista, o antropólogo João Batista de Lacerda, em 1911, vaticinou que em um período de três gerações (100 anos) o país conseguiria produzir uma população de fenótipo branco se continuasse a importar europeus, miscigenando-os com os nativos de um modo “bem dosado”. Para o historiador Oliveira Vianna, o “tipo antropológico e racial brasileiro” era o resultado de uma desordem étnica causada principalmente pelos “typos” africanos. Na obra Casa Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre contesta o argumento que Oliveira Vianna construiu em Evolução do Povo Brasileiro (1923). Para o sociólogo pernambucano, a história social brasileira era o produto da heterogeneidade e dos encontros inter-raciais que “harmonicamente” ocorreram entre membros das diferentes raças.

Como os seus críticos apontam, em sua apologia à mestiçagem, Freyre criou uma imagem da história escravista na qual brancos e negros, escravos e amos e seus filhos mulatos viviam em uma relação de fraternidade e intimidade. O segredo para essa convivência fraternal seria a interação sexual, que minguou o despotismo e a opressão característicos do contexto escravista. Esse mito da “escravidão cordial ou branda”, como é chamado pelos críticos de Freyre, faz-se mais evidente com a figura do mulato como elemento mediador. Sua pele mais clara lhe permitiria entrar em um processo de mobilidade social, transitando entre as raças e conciliando os extremos. A teoria de Gilberto Freyre é criticada por não considerar que, num contexto escravista, existe um exercício do poder que recai sobre a sexualidade, em uma sociedade de relações de gênero e de classe assimétricas.

Os programas eugenistas advogavam o controle da sexualidade. Em defesa de uma sociedade sadia, em princípios do século XX, empregaram-se políticas de controle dos hábitos: repressão do ócio e da vadiagem, do comportamento sexual de mulheres (reprodução, higiene, cuidado com crianças) e dos homens mediante a religião, a medicina e a política. O cuidado com a sexualidade masculina estava diretamente relacionado com o aperfeiçoamento da população: relacionar-se com prostitutas, adquirir doenças venéreas ou ter sexo homoerótico eram vistos como causas de degeneração. Ganharam importância visões e práticas relacionadas ao nacionalismo, a modelos moralistas de família, heterossexualidade, masculinidade, feminilidade e também normalidade sexual. A função reprodutora do sexo era a pedra institucional de uma ordem nacional excludente e repressora.

Paralelamente a essas políticas de depuração racial e sexual, os intelectuais criaram ideais de nação com base no encontro sexual inter-racial. Se os mulatos eram figuras emblemáticas, o que dizer especificamente das mulatas?

A figura da mulata encarna o corpo e a alma do desejo. E foi assim que se converteu em símbolo nacional, construído pela literatura, a medicina, o carnaval e, mais recentemente, pelas agências de turismo e os canais televisivos. A categoria da mulata, como disse a antropóloga Mariza Corrêa, “pode contribuir para questionarmos nossa forma habitual de tratar seja das relações de raça, seja das relações de gênero”, mas também as relações de classe, pois essa mulata faz apologia do mundo dos pobres – os quais, segundo o imaginário social, vivem mais próximos da natureza e dos instintos. A mulata é, desde o começo do século XX e até hoje, o fio condutor de um ideário nacional que racializa os desejos sexuais. Mais recentemente, o mercado do sexo (pornografia, prostituição e turismo) inventou outra figura racial e de gênero que encarna em seu corpo símbolos de classe e de nação: a travesti.

Em diversas legendas de filmes pornográficos, a pobreza, a nacionalidade e o gênero das travestis são vendidos como algo prodigioso, exótico e simultaneamente esdrúxulo. O contrário também acontece: o glamour de algumas travestis ou transexuais destacadas – como a pioneira Roberta Close – é ofertado como sinônimo da abertura sexual dos brasileiros e de uma sociedade moderna e bonita, porém, branca.

Terra do fogo, Wilhelm von Gloeden

No Ocidente, historicamente tem se privilegiado o branco e o heterossexual como paradigmas legítimos e modelos morais que colocam o outro como subalterno. Daí que exista um vínculo entre heterossexismo e racismo. Ambos são dispositivos de opressão que se relacionam e que permitem, por exemplo, pensar que um homem negro é obrigatoriamente macho e que nos circuitos homossexuais a branquidade é o padrão de beleza hegemônico. O dispositivo permite também que movimentos de esquerda, como o negro e o proletário, mesmo sendo revolucionários, conservem em seus valores concepções homofóbicas, machistas e misóginas, e que as políticas LGBT nem sempre ofereçam atenção aos fatores de classe e raça, colocando pessoas socialmente diversas em um mesmo patamar.

Estas são as contradições de um país onde a sexualidade, vista de fora como libertária, na verdade se entrecruza com diversas formas de desigualdade.

* Maria Elvira Diaz-Benitz é professora de Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ.

Maria Elvira Diaz-Benitz. Posições políticas. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8 / Nº 93 / Junho 2013. p. 35-37. 

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