"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

As discussões sobre a entrada do homem na América

É sabido que a humanidade não nasceu nas Américas, tendo penetrado nesse continente em algum momento do Pleistoceno final (o Pleistoceno é o período geológico que se estende entre 2.000.000 e 10.000 anos AP, ao qual sucede o período atual, o Holoceno). Mas quando entrou, onde e como? O fenômeno de povoamento do Brasil deve ser considerado no panorama geral da colonização das Américas.

No início do século XX, acreditava-se que antepassados diretos dos asiáticos atuais teriam penetrado recentemente (há poucos milênios) na América do Norte, justificando o aspecto mongoloide da maioria dos indígenas americanos. O francês Paul Rivet tinha, no entanto, observado que a conformação craniana dos homens de Lagoa Santa (MG), já considerados possivelmente os mais antigos restos ósseos conhecidos no continente, se pareciam mais com a dos australianos que com a dos asiáticos. Imaginou, portanto, que teria havido também uma migração para a América do Sul a partir da Austrália, pelo Pacífico meridional. As pesquisas posteriores mostraram que a presença do homem nas ilhas do Pacífico era muito recente, e a ideia foi abandonada.

Em meados do século XX, verificou-se a presença de populações humanas (as primeiras observadas foram chamadas Clóvis, em referência ao nome do sítio onde foram reconhecidas pela primeira vez, e as seguintes, Folsom) na América do Norte desde cerca de 11.500 anos atrás, durante um período mais frio que o de hoje (as temperaturas podiam ser entre 6º e 10º abaixo das atuais). No início, somente se conheciam desses grupos alguns sítios de matança de grandes animais, como mamutes e bisontes de uma espécie hoje extinta. Com as ossadas desses animais apareciam alguns artefatos de pedra, tais como lascas cortantes e pontas de dardo muito sofisticadas. Apresentavam-se, portanto, esses povos como grandes caçadores, especializados na matança de animais de grande porte em zonas abertas - uma prefiguração dos índios históricos que, após terem aprendido a montar os cavalos introduzidos pelos europeus, passaram a caçar os bisontes das grandes planícies.


Somente nos últimos anos foi possível verificar que as populações Clóvis estavam adaptadas a ambientes muito variados, inclusive às florestas do sudeste americano, onde viviam da coleta de vegetais, complementada pela caça a animais de médio e pequeno porte. De fato, já havia grupos bastante diferenciados, que tinham em comum sobretudo técnicas originais de lascamento da pedra para extrair dos blocos de sílex ou obsidiana longas lâminas curvas e para fabricar pontas retocadas bifacialmente com uma delicada preparação para facilitar o acabamento (a canelura, característica das pontas de Clóvis e de Folsom).

Enquanto os caçadores Clóvis parecem ter perseguido os animais maiores com lanças manuais e varas que os obrigavam a chegar muito perto das presas, os Folsom dispunham de um propulsor - vareta com gancho que permite lançar facilmente dardos com forte poder de penetração a cerca de 30m. De qualquer forma, nenhum desses grupos conhecia o arco. os artesãos Clóvis escolhiam com cuidado as rochas de melhor qualidade para produzir seus sofisticados instrumentos, importando-as ou trazendo-as por vezes de centenas de quilômetros de distância.

Até os anos 1990, a maioria dos arqueólogos - sobretudo os norte-americanos - achava que esses chamados paleoíndios haviam sido os primeiros habitantes do continente e que teriam penetrado na América pela Beríngia (uma faixa entre a Sibéria oriental e o Alasca emersa durante boa parte do Pleistoceno). Com efeito, ao longo dos períodos glaciais, as precipitações ficavam retidas, na forma de gelo, nas regiões polares, provocando um déficit hídrico e um rebaixamento do nível do mar (cerca de 120m em relação ao atual, há cerca de 18.000 anos!). Dessa forma, os locais por onde teria acontecido a passagem intercontinental estariam hoje sob o mar, fora do alcance dos arqueólogos.

No entanto, as pesquisas realizadas nos últimos decênios revelaram uma presença humana inquestionável entre 11.500 e 13.000 anos atrás na América do Sul - particularmente no Chile meridional (em Monte Verde), no Brasil central (Lapa do Boquete, em Minas Gerais, e Santa Elina, no Mato Grosso), no Nordeste e na Amazônia (Monte Alegre). Como é consenso quase geral que os primeiros povoadores da América chegaram pela Beríngia, isso significa que estavam presentes na América do Norte já havia milênios, portanto, anteriormente à Cultura Clóvis. Nos últimos anos, sítios como cactus Hill (EUA), com datações entre 12.000 e 25.000 anos, apresentam indícios bastante convincentes de ocupação nesse período, e alguns outros ganham credibilidade também na América do Sul.


Pintura rupestre: Lapa do Boquete (MG).
Foto: Pierre Colombel

Alguns arqueólogos acreditam ter encontrado evidências ainda mais antigas da presença humana, mas estas parecem duvidosas. No Brasil, o sítio mais discutido no final do século XX foi o abrigo sob a rocha de Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara (PI), amplamente escavado ao longo dos anos 1970 e 1980. Até a base são encontrados carvões, conjuntos de pedras por vezes queimadas, blocos de quartzito toscamente lascados; plaquetas de quartzito com manchas vermelhas caídas da parede foram interpretadas como vestígios de pintura.

No entanto, todos esses elementos estão sob discussão. Um estudo recente dos carvões de "fogueiras", entre os mais antigos, mostrou que eles estão rolados - podem ser oriundos de fogos naturais, sendo depois trazidos pelas enxurradas. Os supostos instrumentos lascados são todos feitos a partir de seixos que até hoje caem no abrigo quando há chuvas fortes, de uma altura de 80m; alguns deles apresentam lascamentos espontâneos parecidos com os que se encontram nos níveis pleistocênicos. Finalmente, as manchas pigmentadas não têm composição diferente da dos escorrimentos naturalmente presentes no paredão, embora uma estudiosa observe que apresentam granulometria mais constante.

Recentemente, datações de mais de 20.000 e 40.000 anos foram obtidas para uma concreção que cobre uma pintura rupestre na mesma região, implicando antiguidade ainda maior dessa figura. Mas a datação direta do pigmento - por um método geralmente considerado mais confiável - indicou a idade de menos de 4.000 anos. Dessa forma, fica difícil acreditar na origem antrópica dos indícios mais antigos do Parque da Serra da Capivara. Em compensação, os vestígios humanos tornam-se evidentes e incontestáveis por volta de 11.000 anos atrás. Nos estados do Mato Grosso e de Minas Gerais, os abrigos de Santa Elina e da Lapa Vermelha foram também achados indícios datados entre 15.000 e 30.000 anos, mas os arqueólogos que os encontraram se mostram prudentes em suas interpretações.

PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 19-23.

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