"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Homofobia: um preconceito crescente

“[...] as novas tecnologias reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e fronteiras sexuais, as articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas; implodem noções tradicionais de tempo, de espaço, de “realidade”; subvertem as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de morrer”. (Guacira Lopes Louro, professora aposentada da UFRGS)


Bandeira gay. Dia do Orgulho Gay, Madri, Espanha, 2008. Onanymous

Homofobia é uma palavra cujo significado implica medo daquele que sente atração sexual por indivíduos do mesmo sexo. Ou seja, é o medo do homossexual. Apesar do nosso costume em usar essa palavra, sua prática extrapola a fobia propriamente dita. Podemos afirmar, sem correr o risco de estarmos exagerando, que há em todo o mundo um conjunto de atitudes marginalizadoras que segregam aqueles de orientação homossexual. Nesse sentido, o termo homofobia, tão comumente usado, é incapaz de abarcar tudo o que a homofobia realmente envolve. Esse termo deveria ser substituído minimamente pelo conceito de preconceito sexual. O preconceito sexual se caracteriza no dia a dia pela totalidade das atitudes marginalizadoras de sexualidades não heterossexuais.

Esse tipo de preconceito sexual parece estar vinculado ao fato de existir em grande parte das diferentes culturas uma predominância heterossexual. A predominância heterossexual vem sendo usada para justificar o que chamamos de heteronormatividade. Heteronormatividade é a crença dos heterossexuais em determinar sua orientação sexual, não só como predominante, mas também como uma possibilidade unânime absoluta. Há embutida nessa visão de mundo que os seres humanos recaem em duas categorias distintas e complementares: macho e fêmea. E, por isso, relações sexuais e maritais são normais somente entre pessoas de sexos diferentes. Há também a defesa que em função da heteronormatividade cada sexo tem certos papéis naturais na vida. Em outras palavras, o ato sexual físico, a identidade de gênero e o papel social de gênero deveriam enquadrar qualquer pessoa dentro de normas integralmente masculinas ou femininas – sendo a heterossexualidade considerada a única orientação sexual normal. As normas às quais a heteronormatividade implica podem ser abertas, encobertas ou implícitas. Essa é uma tese ultrapassada desde 1789, quando entramos na contemporaneidade e com isso num mundo de inclusão e entendimento da diversidade. A contemporaneidade nos deu o direito de aceitação daquilo que é plural – daquilo que é diversificado. Qualquer um que acredite e defenda a heteronormatividade com base em sua predominânica estará em última instância negando seu próprio tempo e realidade.

Os músicos, François Barraud 

Além da predominância dos indivíduos heterossexuais, na maioria das culturas, outra premissa usada para justificar a heteronormatividade consiste na associação heterossexual com a reprodução. Crê-se que a reprodução da espécie e sua manutenção estão necessariamente vinculadas ao ato sexual heterossexual, considerado o único legítimo por natureza. O ato homossexual, por não permitir reprodução da espécie, se torna automaticamente, dentro dessa perspectiva, um ato inadequado e inapropriado. Assim sendo, sujeito a ser banido, perseguido e combatido.

A utilização desse tipo de raciocínio para sustentar a normatividade heterossexual poderia ser plausível no mundo antigo, medieval e moderno, quando pouco ou nada se sabia sobre reprodução humana. Era tamanha a ignorância nesses períodos sobre tal assunto que o sexo dos bebês era atribuído às mulheres. Mulheres que por sua vez pagavam preços altíssimos quando não pariam os varões que a sociedade tanto cobrava. Pagavam o preço da nossa ignorância. Do mesmo modo como a contemporaneidade responsabilizou os cromossomos XY pelo sexo dos bebês, também libertou a reprodução humana das vias naturais. Ou seja, a reprodução da espécie não depende mais do ato sexual físico e pode ser garantida artificialmente. São técnicas inovadoras de inseminação que beneficiam todos os tipos de famílias. Não só as técnicas de inseminação artificial permitem novas formas de reprodução, como também a legalização de barrigas de aluguel proporciona que casais homossexuais se reproduzam consaguineamente. Na verdade já estamos caminhando para algo mais elaborado do que o simples uso de ovócitos e barrigas de aluguel. O avanço científico permitirá que casais de mulheres homossexuais sejam capazes de se reproduzirem consanguineamente tal qual casais de heterossexuais. Tudo indica ser perfeitamente possível extrair e isolar cromossomos dos gametas de uma mulher inserindo-os, posteriormente, no ovócito de sua parceira. A gestação poderia ser feita no útero de qualquer uma das duas. Somente nasceriam meninas, dada a predominância de cromossomos XX. Essas meninas seriam biologicamente filhas de duas mães, e quando submetidas ao teste do DNA, só haveria, necessariamente, vínculo genético das duas mulheres que a geraram – com total ausência de DNA masculino.

Nesse sentido, para aqueles que ainda procuram sustentar a homofobia com base na impossibilidade reprodutiva entre os homossexuais haveria novo problema: a continuidade da espécie somente pelo sexo feminino e a extinção do sexo masculino. Isso implicaria a real supremacia feminina no que concerne à reprodução humana – dado que, até o momento, o útero é a única garantia de reprodução insubstituível.

Portanto, a crença de que somente relações heterossexuais são legítimas com base na reprodução da espécie, ou com base numa reprodução natural, se torna irracional. É uma tese passada (primitiva) e deixada para trás desde que a inseminação artificial foi inventada em meados finais do século passado.

Contudo, a normatização da sexualidade heterossexual com base na possibilidade reprodutiva tem ainda outro grande equívoco: a premissa de que nós nos relacionamos sexualmente exclusiva e estritamente para procriarmos. Essa tese vem sustentando atos de violência em todo o mundo, não só contra os homossexuais como também contra as mulheres. O absurdo das mutilações de clitóris feminino em tribos africanas e os recentes estupros coletivos indianos provam o tamanho do equívoco em restringir sexo a procriação. A mesma violência que considera relações sexuais homossexuais antinaturais também sustenta a mutilação do clitóris. Os estupros coletivos denotam a mentalidade primitiva de que mulheres não devem ter espaço no mundo profissional – muito menos autonomia. É uma mentalidade inverossímil que considera a existência de mulheres exclusivamente para a vida doméstica e para a procriação da espécie. Considerar os homossexuais uma aberração comportamental porque são incapazes de procriar naturalmente inclui exatamente esse tipo de pensamento irracional e intolerante. É intrigante que em pleno século XXI ainda haja tanta gente considerando o sexo exclusivamente para procriação.


Hoerle Zwei Frauen, Heinrich Hoerle

O ato sexual deveria ser considerado por todos algo fisiológico e natural do corpo humano. Precisamos de sexo tanto quanto de alimento e água. E não para por aí. Tendemos a procurar parceiros sexuais também na expectativa de trocarmos experiências afetivas e emocionais. Ou seja, fazemos sexo ora por carência, ora por alegria e ora por interesse em conhecer melhor outra pessoa – numa busca constante por intimidade. Na verdade, os caminhos que nos levam à prática sexual são diversos. Incluem a procriação, mas não se esgotam nessa possibilidade. [...] Quando buscamos parcerias afetivas procuramos quem ofereça afinidades de valores e estilo de vida, interesses econômicos semelhantes, expectativas de uma vida em comum, construção de núcleo familiar funcional, buscamos parceiros admiráveis, confluências de interesses e gostos pessoais. [...] Homossexuais, como todos os demais seres humanos, querem ser amados, querem construir família, querem melhorar de vida, querem encontrar cumplicidade e comprometimento em seus parceiros afetivos. [...] A grande e única diferença entre heterossexuais e homossexuais está em heterossexuais procurarem tal parceria de vida no sexo e gênero oposto, enquanto homossexuais a procuram no mesmo sexo e gênero.


Doze meninos nus na praia, Charles Demuth

Há também outro tradicional equívoco heteronormativo. Boa parte da discriminação se baseia na repulsa ao ato sexual físico homossexual. Muito da chamada fobia calca-se no incômodo causado pela presença de dois órgãos genitais idênticos presentes num mesmo ato sexual. [...] Contudo, quando avaliamos mais detalhadamente tal aversão normalmente encontramos nela muita fantasia e imaginação. Os heterossexuais comumente criam uma imagem mental do ato sexual homossexual num cenário promíscuo e pervertido. Heterossexuais fantasiam com o ato sexual homossexual envolto numa atmosfera de vulgaridade digna de filmes pornográficos da pior qualidade. Fazem isso sem se darem conta do quão distante da vida real está a pornografia. Trata-se de uma repulsa estigmatizada, imatura e estúpida. Não condiz com a realidade dos relacionamentos afetivos e prende os homossexuais num estereótipo vulgar e empobrecido. Uma prisão enclausurante e sem saída. Trata-se de um preconceito que simplesmente nega vínculos afetivos. 

Ana Augusta Carneiro. Homofobia: preconceito nega vínculos afetivos. In: Filosofia. Ano VII, nº 83, junho de 2013. p. 45-49.

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