“[...] as novas tecnologias
reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e fronteiras sexuais,
as articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas;
implodem noções tradicionais de tempo, de espaço, de “realidade”; subvertem as
formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de morrer”. (Guacira Lopes
Louro, professora aposentada da UFRGS)
Bandeira gay. Dia do Orgulho Gay, Madri, Espanha, 2008. Onanymous
Homofobia é uma palavra cujo
significado implica medo daquele que sente atração sexual por indivíduos do
mesmo sexo. Ou seja, é o medo do
homossexual. Apesar do nosso costume em usar essa palavra, sua prática
extrapola a fobia propriamente dita. Podemos afirmar, sem correr o risco de
estarmos exagerando, que há em todo o mundo um conjunto de atitudes
marginalizadoras que segregam aqueles de orientação homossexual. Nesse sentido,
o termo homofobia, tão comumente
usado, é incapaz de abarcar tudo o que a homofobia realmente envolve. Esse
termo deveria ser substituído minimamente pelo conceito de preconceito sexual. O preconceito sexual se caracteriza no dia a
dia pela totalidade das atitudes marginalizadoras de sexualidades não
heterossexuais.
Esse tipo de preconceito sexual
parece estar vinculado ao fato de existir em grande parte das diferentes
culturas uma predominância heterossexual. A predominância heterossexual vem
sendo usada para justificar o que chamamos de heteronormatividade.
Heteronormatividade é a crença dos heterossexuais em determinar sua orientação
sexual, não só como predominante, mas também como uma possibilidade unânime
absoluta. Há embutida nessa visão de mundo que os seres humanos recaem em duas
categorias distintas e complementares: macho e fêmea. E, por isso, relações
sexuais e maritais são normais somente entre pessoas de sexos diferentes. Há
também a defesa que em função da heteronormatividade cada sexo tem certos
papéis naturais na vida. Em outras palavras, o ato sexual físico, a identidade
de gênero e o papel social de gênero deveriam enquadrar qualquer pessoa dentro
de normas integralmente masculinas ou femininas – sendo a heterossexualidade
considerada a única orientação sexual normal. As normas às quais a
heteronormatividade implica podem ser abertas, encobertas ou implícitas. Essa é
uma tese ultrapassada desde 1789, quando entramos na contemporaneidade e com
isso num mundo de inclusão e entendimento da diversidade. A contemporaneidade
nos deu o direito de aceitação daquilo que é plural – daquilo que é
diversificado. Qualquer um que acredite e defenda a heteronormatividade com
base em sua predominânica estará em última instância negando seu próprio tempo
e realidade.
Os músicos, François Barraud
Além da predominância dos
indivíduos heterossexuais, na maioria das culturas, outra premissa usada para
justificar a heteronormatividade consiste na associação heterossexual com a
reprodução. Crê-se que a reprodução da espécie e sua manutenção estão
necessariamente vinculadas ao ato sexual heterossexual, considerado o único
legítimo por natureza. O ato homossexual, por não permitir reprodução da
espécie, se torna automaticamente, dentro dessa perspectiva, um ato inadequado
e inapropriado. Assim sendo, sujeito a ser banido, perseguido e combatido.
A utilização desse tipo de
raciocínio para sustentar a normatividade heterossexual poderia ser plausível
no mundo antigo, medieval e moderno, quando pouco ou nada se sabia sobre
reprodução humana. Era tamanha a ignorância nesses períodos sobre tal assunto
que o sexo dos bebês era atribuído às mulheres. Mulheres que por sua vez
pagavam preços altíssimos quando não pariam os varões que a sociedade tanto
cobrava. Pagavam o preço da nossa ignorância. Do mesmo modo como a
contemporaneidade responsabilizou os cromossomos XY pelo sexo dos bebês, também
libertou a reprodução humana das vias naturais. Ou seja, a reprodução da
espécie não depende mais do ato sexual físico e pode ser garantida
artificialmente. São técnicas inovadoras de inseminação que beneficiam todos os
tipos de famílias. Não só as técnicas de inseminação artificial permitem novas
formas de reprodução, como também a legalização de barrigas de aluguel
proporciona que casais homossexuais se reproduzam consaguineamente. Na verdade
já estamos caminhando para algo mais elaborado do que o simples uso de ovócitos
e barrigas de aluguel. O avanço científico permitirá que casais de mulheres
homossexuais sejam capazes de se reproduzirem consanguineamente tal qual casais
de heterossexuais. Tudo indica ser perfeitamente possível extrair e isolar
cromossomos dos gametas de uma mulher inserindo-os, posteriormente, no ovócito
de sua parceira. A gestação poderia ser feita no útero de qualquer uma das
duas. Somente nasceriam meninas, dada a predominância de cromossomos XX. Essas
meninas seriam biologicamente filhas de duas mães, e quando submetidas ao teste
do DNA, só haveria, necessariamente, vínculo genético das duas mulheres que a
geraram – com total ausência de DNA masculino.
Nesse sentido, para aqueles que
ainda procuram sustentar a homofobia com base na impossibilidade reprodutiva
entre os homossexuais haveria novo problema: a continuidade da espécie somente
pelo sexo feminino e a extinção do sexo masculino. Isso implicaria a real
supremacia feminina no que concerne à reprodução humana – dado que, até o momento,
o útero é a única garantia de reprodução insubstituível.
Portanto, a crença de que somente
relações heterossexuais são legítimas com base na reprodução da espécie, ou com
base numa reprodução natural, se torna irracional. É uma tese passada (primitiva)
e deixada para trás desde que a inseminação artificial foi inventada em meados
finais do século passado.
Contudo, a normatização da
sexualidade heterossexual com base na possibilidade reprodutiva tem ainda outro
grande equívoco: a premissa de que nós nos relacionamos sexualmente exclusiva e
estritamente para procriarmos. Essa tese vem sustentando atos de violência em
todo o mundo, não só contra os homossexuais como também contra as mulheres. O
absurdo das mutilações de clitóris feminino em tribos africanas e os recentes
estupros coletivos indianos provam o tamanho do equívoco em restringir sexo a
procriação. A mesma violência que considera relações sexuais homossexuais
antinaturais também sustenta a mutilação do clitóris. Os estupros coletivos
denotam a mentalidade primitiva de que mulheres não devem ter espaço no mundo
profissional – muito menos autonomia. É uma mentalidade inverossímil que
considera a existência de mulheres exclusivamente para a vida doméstica e para
a procriação da espécie. Considerar os homossexuais uma aberração
comportamental porque são incapazes de procriar naturalmente inclui exatamente
esse tipo de pensamento irracional e intolerante. É intrigante que em pleno
século XXI ainda haja tanta gente considerando o sexo exclusivamente para
procriação.
Hoerle Zwei Frauen, Heinrich Hoerle
O ato sexual deveria ser
considerado por todos algo fisiológico e natural do corpo humano. Precisamos de
sexo tanto quanto de alimento e água. E não para por aí. Tendemos a procurar
parceiros sexuais também na expectativa de trocarmos experiências afetivas e
emocionais. Ou seja, fazemos sexo ora por carência, ora por alegria e ora por
interesse em conhecer melhor outra pessoa – numa busca constante por
intimidade. Na verdade, os caminhos que nos levam à prática sexual são
diversos. Incluem a procriação, mas não se esgotam nessa possibilidade. [...]
Quando buscamos parcerias afetivas procuramos quem ofereça afinidades de
valores e estilo de vida, interesses econômicos semelhantes, expectativas de
uma vida em comum, construção de núcleo familiar funcional, buscamos parceiros
admiráveis, confluências de interesses e gostos pessoais. [...] Homossexuais,
como todos os demais seres humanos, querem ser amados, querem construir
família, querem melhorar de vida, querem encontrar cumplicidade e comprometimento
em seus parceiros afetivos. [...] A grande e única diferença entre
heterossexuais e homossexuais está em heterossexuais procurarem tal parceria de
vida no sexo e gênero oposto, enquanto homossexuais a procuram no mesmo sexo e
gênero.
Doze meninos nus na praia, Charles Demuth
Há também outro tradicional
equívoco heteronormativo. Boa parte da discriminação se baseia na repulsa ao
ato sexual físico homossexual. Muito da chamada fobia calca-se no incômodo
causado pela presença de dois órgãos genitais idênticos presentes num mesmo ato
sexual. [...] Contudo, quando avaliamos mais detalhadamente tal aversão
normalmente encontramos nela muita fantasia e imaginação. Os heterossexuais
comumente criam uma imagem mental do ato sexual homossexual num cenário
promíscuo e pervertido. Heterossexuais fantasiam com o ato sexual homossexual
envolto numa atmosfera de vulgaridade digna de filmes pornográficos da pior
qualidade. Fazem isso sem se darem conta do quão distante da vida real está a
pornografia. Trata-se de uma repulsa estigmatizada, imatura e estúpida. Não
condiz com a realidade dos relacionamentos afetivos e prende os homossexuais
num estereótipo vulgar e empobrecido. Uma prisão enclausurante e sem saída.
Trata-se de um preconceito que simplesmente nega vínculos afetivos.
Ana Augusta Carneiro. Homofobia: preconceito nega vínculos afetivos. In: Filosofia. Ano VII, nº 83, junho de 2013. p. 45-49.
Ana Augusta Carneiro. Homofobia: preconceito nega vínculos afetivos. In: Filosofia. Ano VII, nº 83, junho de 2013. p. 45-49.
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