Há uma linha mais ou menos
contínua de perseverança da globalização como futuro da história. Essa
tendência é estimulada pelo progresso das técnicas e dos instrumentos de
comunicação. Na Antiguidade, foram as estradas romanas; da Idade Média ao
século XIX, foi a navegação marítima. Nos séculos XIX e XX, foram os barcos a
vapor, o telefone, o telégrafo, o avião. Hoje em dia, é a internet.
Fernand Braudel ressaltou que a
globalização capitalista modela o espaço político-geográfico. Ao redor de um
centro, de uma cidade, sede de um organismo de impulsão, da Bolsa, funcionam
"satélites" mais ou menos afastados. A relação centro-periferia
domina esse sistema espacialmente hierarquizado. Foram os casos sucessivamente
de Antuérpia, Amsterdã, Londres e Nova York. [...] Na Antiguidade, foi a Roma
mediterrânea, da Idade Média ao século XIX, a Europa, hoje em dia, os Estados
Unidos. Quase sempre surge uma saudável e racional resistência a essas
hegemonias centrais.
Essa resistência pode degenerar e
assumir formas extremas e condenáveis, sobretudo no caso da globalização atual,
em que certos extremistas podem colocar-se como vítimas e responder com a arma
do terrorismo. [...]
[...] No fenômeno da
globalização há uma ideia de resultado, de produzir qualquer coisa; mas, se há
um progresso, há simultaneamente males que estão ligados às globalizações
históricas e colocam em pauta os perigos da globalização atual. O que Roma
ofereceu às regiões que ela dominou por séculos? Ela trouxe a paz. A pax romana
é um elemento ligado à dominação romana. Por conseguinte, o espaço da
globalização pode e deve ser considerado um espaço pacífico. Evidentemente, há
que se perguntar o que significa essa pacificação, como ela foi obtida e o que
representa a dominação mesmo pacífica que ela ofereceu. Por outro lado, a
globalização romana promoveu um sentimento entre os habitantes ou, ao menos,
entre a camada superior dos habitantes desse espaço mundial, de uma cidadania
universal, cidadãos do mundo. O exemplo mais conhecido é o de Paulo de Tarso,
São Paulo, esse judeu em via de se tornar cristão que afirmava com toda a força,
como proteção e orgulho, "civis romanus sum", "sou cidadão
romano". Em 212, o imperador Caracala proclamou um edito atribuindo a
cidadania romana a todos os sujeitos livres do império, não importando a origem
étnica ou cultural. Ademais, a globalização romana resultou na formação de um
espaço jurídico em que existiam, portanto, noções e práticas de direito que
eram ligadas a essa pacificação e que a acompanhavam. Daí provém ainda hoje a
noção de Estado de direito. [...]
Em compensação, o que se deve
apontar como débito dessa globalização? Pode-se resumir afirmando que, ao termo
de um longo período de vários séculos, a globalização romana se mostrou incapaz
de integrar ou assimilar novos cidadãos, aqueles que ela denominou de
"bárbaros" e que, não podendo ser integrados no espaço e no sistema
romano, sublevaram-se contra esse espaço. A globalização provoca, em maior ou
menor tempo, a revolta daqueles aos quais ela se tornou não um benefício, mas uma
exploração e mesmo uma exclusão.
Quanto à colonização ligada à
expansão da Europa e que acabará sob as formas do capitalismo, ela começa nos
séculos XV e XVI e atinge sobretudo a África e a América. [...]
Um problema muito importante no
que toca à globalização diz respeito à saúde, ao estado biológico das
populações. Aqui também a balança não encontra um equilíbrio. Na América, o
resultado foi globalmente catastrófico. Os colonizadores trouxeram
involuntariamente, salvo talvez indiretamente pela difusão do álcool, suas
doenças, micróbios, bacilos, que perturbaram profundamente o equilíbrio
biológico dos povos globalizados. Mas também há que se observar que essa
colonização promoveu um progresso na higiene e na medicina [...]. No entanto, não estou cedendo
ao mito dos colonizadores franceses [...] ao dizer que a globalização deve proporcionar, e freqüentemente
proporciona, a difusão da escola, do saber, do uso da escrita e da leitura. É
certo que no outro prato da balança dois grandes males se apresentam: o
primeiro é o que eu chamo de violação das culturas anteriores dos povos por
meio de uma verdadeira destruição dessas culturas, e aqui entra em cena um
componente da globalização que é a religião. O terreno não é apenas aquele da
civilização, mas também aquele da religião. É um problema enorme em que a
posição de cada um e sua sensibilidade podem levar a posições particulares, mas
prefiro falar – não sou o primeiro a fazê-lo, mas não estou certo de que o faço
de maneira aprofundada – do que se pode denominar, com risco de chocar certo
número de meus leitores, de perigos do monoteísmo. A globalização adquiriu um
caráter monoteísta. A história comprova que não raro o monoteísmo desliza para
a intolerância e mesmo para a perseguição. O Deus único não se contenta apenas
em caçar os deuses anteriores, ele também destrói toda a civilização que está
relacionada a eles e impõe à sociedade globalizada um modelo de sociedade
dominado por um poder absoluto. Em seu mais alto nível, a globalização acarreta
o maior dos males que pode sofrer uma sociedade: a recusa da tolerância. Por
outro lado, e aqui se trata de ordem social, para retomar um termo de Braudel,
percebe-se que, depois que o aspecto econômico se torna primordial, a
globalização desenvolve, cria ou até mesmo exacerba as oposições entre pobres e
ricos ou dominadores. A pauperização é um mal até hoje praticamente inevitável
das globalizações. Para voltar ao papel das culturas, quero sublinhar de uma
vez que as globalizações não violaram apenas as culturas, mas a história. Tal
questão está no cerne de minha reflexão. A expressão inventada, geralmente
pelos colonizadores, "povos sem história", e retomada pelos etnólogos
imersos nas próprias culturas, dizimou populações que de fato tinham uma
história, geralmente uma história oral, uma história particular e que foi sem
dúvida destruída. A destruição da memória, da história, do passado é algo
terrível para uma sociedade. A globalização deve assumir as histórias
particulares anteriores, não as eliminar.
Charge de Angeli
Minha conclusão é simples e
talvez banal: deve-se supervisionar, controlar e combater os perigos da
globalização e fazer frutificar as potenciais contribuições positivas. Os
principais perigos são, a meu ver, a dominação do econômico, o desenvolvimento
da desigualdade e da injustiça social e a uniformização, a qual nunca é
aceitável. Que existam compromissos sociais e políticos que façam o conjunto
funcionar é admissível, mas a uniformização não é um ideal a ser proposto para
a humanidade. Deve-se, portanto, desenvolver as instituições, os movimentos, os
ideais que possam fazer triunfar com a globalização a partilha, a paz no
respeito das diversidades. Uma globalização assassina das diversidades é nociva
e catastrófica.
LE GOFF, Jacques. Vamos construir a globalização que nos convém. In: Revista Veja, ano 34, n. 51, dez. 2001. p. 158-160.
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