"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 8 de setembro de 2013

Salvador Allende

Três dias depois do golpe militar que derrubou Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, o poeta Pablo Neruda escreveu o texto final de suas memórias, em que conta a morte do presidente chileno. No dia 23 de setembro, Neruda morreu. Sua casa em Santiago, onde o corpo era velado, foi saqueada e destruída, bem como sua propriedade em Valparaíso.


Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973: arredores do Palácio La Moneda

O Chile tem uma longa histórica civil com poucas revoluções e muitos governos estáveis, conservadores e medíocres. Muitos presidentes menores e somente dois grandes presidentes: Balmaceda e Allende. É curioso que os dois provinham do mesmo meio, da burguesia endinheirada, que aqui chamamos aristocracia. Como homens de princípios, empenhados em engrandecer um país diminuído pela oligarquia medíocre, os dois foram conduzidos à morte da mesma maneira. Balmaceda foi levado ao suicídio por resistir à entrega da riqueza salitreira às companhias estrangeiras.

Allende foi assassinado por ter nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Em ambos os casos, a oligarquia chilena organizou revoluções sangrentas. Em ambos os casos os militares fizeram o papel de matilha. As companhias inglesas no período de Balmaceda e as norte-americanas no período de Allende favoreceram estes movimentos militares.

Em ambos os casos, as casas dos presidentes foram saqueadas por ordem de nossos distintos "aristocratas". Os salões de Balmaceda foram destruídos a golpes de machado. A casa de Allende, graças ao progresso, foi bombardeada do ar por nossos heróicos aviadores.

No entanto, estes dois homens foram muito diferentes. Balmaceda foi um orador cativante. Tinha um temperamento imperioso que o aproximava cada vez mais da autoridade unipessoal. Estava seguro da elevação de seus propósitos. A todo instante se viu rodeado de inimigos. Sua superioridade sobre o meio em que vivia era tão grande e tão grande sua solidão que acabou por se concentrar em si mesmo. O povo que devia ajudá-lo não existia como força, quer dizer, não estava organizado. O presidente estava condenado a se conduzir como um iluminado, como um sonhador: seu sonho de grandeza ficou no sonho. Depois de seu assassinato, os vorazes mercadores estrangeiros e os parlamentares criollos se apossaram do salitre. Para os estrangeiros, a propriedade e as concessões; para os criollos, os subornos. Recebidos os trinta dinheiros, tudo voltou à normalidade. O sangue de uns quantos milhares de homens do povo secou logo nos campos de batalha. Os operários mais explorados do mundo, os das regiões Norte do Chile, não cessaram de produzir imensas quantidades de libras esterlinas para a City de Londres.

Allende nunca foi um grande orador. E como estadista era um governante que fazia consultas antes de tomar qualquer medida. Foi o antiditador, o democrata por princípio, até nos menores detalhes. Coube-lhe um país que já não era a nação inexperiente de Balmaceda: encontrou uma classe operária poderosa que sabia o que estava fazendo. Allende era um dirigente coletivo: um homem que, sem sair das classes populares, era um produto da luta dessas classes contra o imobilismo e a corrupção de seus exploradores. Por tais motivos e razões, a obra que Allende realizou em tão curto tempo é superior à de Balmaceda; mais ainda, é a mais importante da histórica do Chile. Só a nacionalização do cobre foi uma empresa titânica. E a destruição dos monopólios, a profunda reforma agrária e muitos objetivos mais que foram cumpridos sob seu governo de essência coletiva.


Presidente Salvador Allende entrega o documento da Nacionalização do Cobre
 Biblioteca del Congreso Nacional - Chile

As obras e os feitos de Allende, de indelével valor nacional, enfureceram os inimigos de nossa liberação. O simbolismo trágico desta crise se revela no bombardeio do palácio do governo. A gente evoca a blitzkrieg, da aviação nazista, contra indefesas cidades estrangeiras, espanholas, inglesas, russas. Agora sucedia o mesmo crime no Chile: pilotos chilenos atacavam com violência o palácio que durante dois séculos foi o centro da vida civil do país.


Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973:  cerco e bombardeio do Palácio de La Moneda

Escrevo estas rápidas linhas para minhas memórias apenas três dias depois dos fatos inqualificáveis que levaram à morte meu grande companheiro, o presidente Allende. Seu assassinato foi mantido em silêncio, foi enterrado secretamente, permitiram somente à sua viúva acompanhar o imortal cadáver. A versão dos agressores é que achavam seu corpo inerte, com mostras visíveis de suicídio. A versão que foi publicada no estrangeiro é diferente. Após o bombardeio aéreo, vieram os tanques, muitos tanques, para lutar intrepidamente contra um só homem: o presidente da República do Chile, Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem outra companhia a não ser seu grande coração envolto em fumaça e chamas.

Não podiam perder uma ocasião tão boa. Era preciso metralhá-lo porque jamais renunciaria a seu cargo. O corpo foi enterrado secretamente num lugar qualquer. O cadáver que foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher, que levava em si mesma toda a dor do mundo, a gloriosa figura morta ia crivada e despedaçada pelas balas das metralhadoras dos soldados do Chile, que outra vez tinham atraiçoado o Chile.

NERUDA, Pablo. Confesso que vivi - Memórias. São Paulo: Difel, 1979. p. 347-349. 

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