Índia tupi, Albert Eckhout
O tamanho de muitas ocas encontradas pelos arqueólogos mostra que, desde a pré-história, elas abrigavam famílias extensas. Segundo os cronistas, cada aldeia era politicamente independente e dirigida por consenso pelos chefes de oca. Mas várias delas costumavam se reunir em confederações militares encabeçadas por chefes de guerra – os morubixaba, que podiam mobilizar milhares de guerreiros. No século XVI, enquanto a maioria dos chefes de família extensa desempenhava também as funções de pajé, predicatores ambulantes – os caraíba – de grande prestígio viajavam de um território para outro.
Os mesmos cronistas confirmam que
a mandioca era a base alimentar entre os Tupi, enquanto o mesmo papel era
desempenhado pelo milho na região Guarani, de clima mais frio. A farinha de
mandioca, misturada com a farinha de peixe torrada no moquém, que se conserva
alguns dias, permitia dispor de reservas alimentares adequadas durante as
expedições de guerra. Além de milho e mandioca (brava e doce), cultivavam-se
batata-doce, feijão, pimenta, amendoim, abóbora e abacaxi. Plantavam algodão
para fazer redes e tabaco para os rituais de defumação.
As operações militares em geral não
tencionavam conquistar terras (o que talvez explique a estabilidade da
fronteira do Paranapanema entre prototupi e protoguarani) nem matar os
inimigos, mas prover a tribo de prisioneiros, cujo sacrifício ritual, seguido
do consumo da carne, era necessário à continuidade da sociedade. Nesse aspecto,
podemos lembrar da existência de diversos sistemas americanos de guerras
rituais, incluindo a “guerra florida” mesoamericana, instituída para prolongar
o autossacrifício divino que permitiu o movimento do Sol ao redor da Terra.
Os rituais antropofágicos não
deixaram muitos vestígios arqueológicos, fora alguns raros casos de ossos
humanos quebrados e queimados encontrados na baía de Guanabara. De fato,
sabemos um pouco mais sobre os costumes funerários dedicados aos membros da
comunidade, à medida que alguns mortos, enterrados de modo provisório numa cova
até as carnes apodrecerem, tinham seus ossos finalmente depositados num cambuchi ou igaçaba. Muitas vezes o corpo era acompanhado por vasilhas pintadas
(caguaba para beber o cauim no sul; bacias ovais ou
quadrangulares para prepará-lo, no norte).
Só podemos imaginar a arte
musical ou plumária dos Tupiguarani a partir dos relatos dos cronistas sobre os
Tupinambá do século XVI (Jean de Léry registrou partituras) ou das poucas
suntuosas capas de pena de papagaio conservadas em museus da Europa. Porém, a
decoração da cerâmica pode ser observada em milhares de peças arqueológicas.
Com efeito, as mulheres decoravam
a grande maioria de suas vasilhas. As oleiras do sul investiam mais na
qualidade das decorações plásticas (feitas modificando o relevo das superfícies
antes que os potes secassem), as do domínio protoguarani dedicavam seus maiores
esforços em realizar maravilhosos desenhos pintados em linhas pretas ou
vermelhas sobre um fundo branco.
De forma geral, as panelas yapepó
eram decoradas por corrugações ou acaneladuras que reproduziam o aspecto de um
couro de jacaré. As grandes cambuchi-igaçaba
podiam ser deixadas sem decoração, ou receber desenhos pintados no ombro
(sobretudo no sul) ou, ainda, serem corrugadas. Vasilhas menores eram decoradas
por ungulações – impressões de unhas ou de caniços, formando padrões geométricos
simples. As caguaba do sul e as
bacias do norte eram exclusivamente pintadas – talvez para salientar sua relação
com os rituais da morte e do cauim.
Embora os desenhos sejam
considerados geométricos, pudemos verificar que muitos deles evocam elementos
corporais: cabeças (no Rio Grande do Norte), corpos inteiros ou esquartejados,
ossos e provavelmente intestinos (litoral carioca e sul de Minas Gerais). Algumas
peças do litoral central são verdadeiras obras-primas, nas quais a descoberta
dos motivos – realizados com uma profusão de linhas espessas de uma fração de
milímetro que criam um desenho em teia de aranha – requer um verdadeiro esforço
de adaptação da vista. As regras que regem a elaboração dos desenhos, as cores
a serem utilizadas, os temas destinados à periferia da vasilha e os que ocupam
a parte central correspondem a um verdadeiro código que apenas agora começa a
ser desvendado.
PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história
do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 104-106.
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