Após a abertura dos portos pelo príncipe regente D. João VI em 1808, as expedições científicas ao Brasil se multiplicaram e com elas vieram artistas para documentar as descobertas botânicas, zoológicas, os aspectos humanos e sociais do país. Nesse contexto, foram produzidos diversos álbuns de "Viagens pitorescas" que visavam ao público europeu, mas interessava igualmente aos brasileiros. Seus autores eram os "pintores viajantes", artistas europeus que no século XIX andavam pelo mundo registrando a fauna, a flora, as paisagens, os costumes e os tipos humanos de países distantes.
Entre esses estavam Emil Bauch (1823-c.1890), Bernhard Wiegandt (1851-1918), que nasceram em cidades que viriam a fazer parte da Alemanha - Hamburgo e Colônia, respectivamente - e Gustavo Dall'Ara (1865-1923), natural de Rovigo, na Itália. Todos chegaram ao Brasil ainda jovens, tinham 25 anos de idade, mais ou menos. Por aqui estiveram em períodos diferentes e é improvável que tenham se conhecido pessoalmente. As pinturas desses três artistas contam histórias, retratam cenas de um Rio de Janeiro como se observadas de diferentes ângulos. Exemplos disso são "Vista da Rua Direita" (c.1860), de Bauch; "Rua São Clemente" (1884), de Wiegandt; e "Rua Buenos Aires" (1899), de Dall"Ara. Quando pintaram esses quadros, já tinham vivido alguns anos no Brasil. Dos três, apenas Wiegandt retornou à Europa. Bauch e Dall'Ara se integraram à vida artística carioca e aqui se estabeleceram.
Em diversos aspectos essas obras se assemelham, a começar pelo assunto. As ruas do Rio foram tema recorrentes entre os "pintores viajantes" e agradavam a um público europeu ávido por imagens de países remotos. Por suas dimensões, nem muito grandes nem muito pequenas [...], vemos que eram destinadas à decoração de residências particulares. A posição das telas na vertical, escolhida pelos três pintores, favoreceu a representação da perspectiva das ruas que convida o espectador a "entrar" no quadro e a misturar-se à vida urbana. As ruas retratadas são bem movimentadas. Há gente que passa, vendedores ambulantes anunciam mercadorias, moradores param para conversar, veículos circulam.
Os artistas devem ter se esforçado para retratar com fidelidade as cenas que tinham diante dos olhos ou guardadas na memória. Expõem visões pessoais sobre as ruas da cidade. Um intervalo de 15 ou 20 anos separam os quadros. A passagem do tempo parece ter trazido novas formas de ver e sentir o mundo, outros modos de expressar sensações.
Quem hoje enfrenta os engarrafamentos diários da Rua Primeiro de Março (nome atual da antiga Rua Direita), no Centro do Rio, tem dificuldades para imaginá-la há 150 anos. O quadro "Vista da Rua Direita", de Bauch nos aproxima dos tempos áureos da famosa rua cantada pelo povo em versinhos sarcásticos que o escritor João do Rio (1881-1921) registrou em sua A alma encantadora das ruas (1908): "Vista Alegre é rua morta / A Formosa é feia e brava / A Rua Direita é torta / A do Sabão não se lava..."
"Vista da Rua Direita", Rio de Janeiro, de Bauch. A tela apresenta a arquitetura e o dia a dia da Rua Direita.
Brincadeiras à parte, a Rua Direita, que era curvam era também um caminho direto entre o morro do Castelo e o de São Bento. No século XIX, passou a ser uma das mais importantes da cidade, ladeando o Largo do Paço (atual Praça XV) e vizinha do Paço Imperial. Foi a principal via antes que a Avenida Central (atual Rio Branco) fosse aberta em 1905. No quadro de Emil Bauch, a Rua Direita é vista do alto. Conforme sugere o crítico literário Alexei Bueno, supõe-se que o pintor tenha se posicionado no passadiço que ligava o Paço ao convento dos Carmelitas (hoje Universidade Cândido Mendes) do outro lado da rua, que por sua vez se ligava à Capela Imperial por um segundo passadiço. No quadro, vê-se um pedacinho dessa passagem entre o convento e a Capela, sua torre muito branca que não existe mais, e a fachada da qual só restou intacto o primeiro andar. Ao seu lado, é possível reconhecer a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, de fachada inalterada, assim como as torres da Candelária ao fundo. À direita, está a lateral da igreja da Santa Cruz dos Militares, o alto de sua torre sineira, e a pontinha da cúpula da igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, mais adiante.
Bauch fixou na tela a arquitetura da cidade e deixou um valioso documento de seu passado. Se tivesse feito apenas isso, já teria realizado uma obra de grande interesse. Fez mais. Sua tela é cheia de vida. Na rua misturam-se pedestres e veículos os mais variados, puxados por burros ou cavalos. Uma carruagem faz a curva para entrar no Largo do Paço, onde uma fila de tílburis, os táxis da época, aguardam passageiros. Homens e mulheres, brancos e negros, ocupam as calçadas e caminham pelo meio da rua sem demonstrar preocupação com o movimento dos carros. Vemos casais de mãos dadas, homens de casaca e cartola, mulheres de xale e sombrinha. Os negros vendem quitutes. Uma delas sentou-se no meio-fio em frente a seu tabuleiro.
Já o quadro de Wiegandt, apresenta diferenças da tela "Vista da Rua Direita" de Bauch. Enquanto o traço de Bauch é minucioso ao estremo, a obra de Wiegandt é larga e solta. Isso é evidente em pequenos trechos: Bauch pinta as linhas do contorno de cada uma das pedras do calçamento; Wiegandt sugere as pedras apenas com manchas. Olhando a tela bem de perto, vemos o relevo da tinta em toda a superfície, muito diferente da composição lisa de Bauch que camufla as marcas do pincel. O aspecto geral da cena é também muito diverso. A luz do sol intenso na "Vista da Rua Direita" expõe todos os detalhes da arquitetura e dos personagens os mais distantes. Na elegante "Rua São Clemente", a luz suave é filtrada pela névoa que desce da montanha, o que permite a Wiegandt deixar áreas na sombra e nos envolver na atmosfera úmida. Na representação das figuras humanas, Bauch parece estar no limite entre a pintura erudita e a popular. Seus tipos são como bonequinhos colados à paisagem. Já em Wiegandt, as figuras têm gestos expressivos que nos fazem imaginar o que estão dizendo ou sentindo. Sua pintura é mais sugestiva que descritiva. Ao fundo, o Corcovado imponente com sua natureza imutável se sobrepõe à vida cotidiana e às pequenas alegrias da rua.
"Rua São Celemente", de Wiegandt
A pintura de Gustavo Dall'Ara, "Rua Buenos Aires", por sua vez, é diferente tanto do quadro de Bauch quanto do de Wiegandt. Seus personagens são quase caricaturais. O pintor chegou ao Rio em 1890 para trabalhar como chargista no periódico A Vida Fluminense. É como um cronista que Gustavo Dall'Ara pinta o cotidiano urbano, os tipos que atraíram seu olhar. O vendedor de perus com sua cara engraçada e a baiana vestida a caráter parecem saídos de outros tempos, assim como o bonde puxado a burro. Mas o bonde elétrico já havia sido inaugurado em 1892, sete anos antes de Dall'Ara pintar a Rua Buenos Aires. Nessa tela, o pintor parece se divertir com a mistura de passado e presente no dia a dia da cidade.
"Rua Buenos Aires", de Dall'Ara
Há ainda uma mudança muito clara quanto ao ponto de vista adotado pelos três pintores. A "Vista da Rua Direita" de Bauch é como uma maquete vista do alto, povoada por diminutas figurinhas. Bernhard Wiegandt nos coloca ao nível da "Rua São Clemente", porém um pouco distantes dos personagens que se encontram a alguns passos de nós. Já Gustavo Dall'Ara nos insere no burburinho da Rua Buenos Aires. É como se estivéssemos na calçada da esquerda, e daqui a pouco fôssemos atropelados pela turba de perus que se aproxima.
Essas ruas pintadas nos convidam a percorrer os caminhos da cidade e os caminhos da história da arte. Os pintores europeus que por aqui passaram ou se estabeleceram faziam parte do ambiente artístico carioca, participaram das Exposições da Academia, atuaram como professores particulares de pintura, realizaram trabalhos decorativos nos palacetes. Em suas telas se misturavam arte erudita e popular, pintura e caricatura, em especial nos quadros de Bauch e Dall'Ara. A diversidade de expressões e de obras individuais sugerem diferentes visões de mundo e nos mostram a vitalidade da pintura realizada no Rio de Janeiro do século XIX.
Ana Maria Tavares Cavalcanti. Pintores, viajantes e cronistas. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8, nº 90, março 2013. p. 64-69.
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