Embora certas pinturas rupestres talvez tenham sido realizadas já no período anterior, a maioria dos grafismos encontrados em abrigos data provavelmente dos últimos seis milênios antes da Era Cristã. Com certeza não eram obras de "arte" no sentido que damos hoje à palavra. É claro que, durante todos esses milênios e em tantos lugares, algumas pessoas podem ter deixado simples graffitti, e outros desenhos talvez fossem feitos para fins decorativos. No entanto, o mais provável é que a maioria dos grafismos tenha sido feita como afirmação de etnicidade, expressão de uma crença, ato mágico, proclamação política de status, trato ou posse. O reconhecimento da existência de complexos temáticos estáveis ao longo de séculos e milênios levou os arqueólogos a definirem as "tradições" rupestres, nas quais variações menores de uma região para outra permitem reconhecer fácies, ou subtradições, enquanto modificações ocorridas ao longo do tempo permitem sucessivos estilos.
Não se encontram grafismos pré-históricos em todo o Brasil central ou nordestino. Em algumas regiões, faltavam suportes rochosos abrigados, e talvez as populações deixassem suas marcas em árvores, retirando as cascas para criar figuras em negativo - como faziam os índios Bakari no século XIX. Mas mesmo em locais onde existem paredes naturais protegidas, há regiões nas quais a "arte rupestre" é inexistente ou raríssima - como as de Arcos e de Pains, em Minas Gerais -, enquanto no vale do rio Peruaçu e na serra da Capivara é difícil andar ao longo dos paredões além de poucas centenas de metros sem encontrar um painel pintado.
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Os sítios da região de São Raimundo Nonato (PI) serviram de referência para estabelecer a sequência de base do Nordeste brasileiro.
O conjunto de pinturas mais antigo é formado por representações humanas agrupadas em cenas, eventualmente acompanhadas por animais. Esses grafismos definem a Tradição Nordeste, que, segundo as pesquisadoras locais, se teria desenvolvido entre 12.000 e 6.000 anos atrás, no Piauí meridional. Nesse estado, o estilo mais antigo, denominado Serra da Capivara, apresenta figuras monocrômicas cuja cor contrasta com a do suporte natural. As representações humanas mostram cabeças por vezes ornadas com cocar, isoladas, e as figuras parecem assexuadas. Quando estão em grupo, o sexo é indicado de maneira convencional (um traço para o pênis, sempre erguido, e um círculo para a vulva). As personagens são geralmente muito dinâmicas. Formam cenas familiares (dois adultos e uma criança), relações sexuais (casais em várias posições, ou vários homens segurando uma mulher, homens segurando um pênis enorme); caça ao tatu (o animal é segurado pelo rabo) ou ao veado (com uma rede). Uma cena muito característica é conhecida como a "da árvore": várias pessoas, de braços erguidos, rodeiam uma árvore, ou uma delas segura um galho. Figuras antropomorfas também formam correntes, evocando acrobatas. As figuras zoomorfas são sobretudo de cervídeos e emas.
Tradição Nordeste: Toca da Extrema II, Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí
Por volta de 9.000 anos atrás, as cenas de violência se multiplicam: estupros, combates, execução de pessoas amarradas a um poste (complexo Serra Talhada). Finalmente, com o estilo Serra Branca, o movimento desaparece e as figuras tornam-se angulosas, com um grande corpo retangular preenchido por desenhos geométricos eventualmente bicrônicos dos quais se destacam pequenos membros filiformes.
Os dois primeiros estilos da Tradição Nordeste se propagaram fora do Piauí, para os estados do Nordeste, o norte de Minas Gerais, o sul de Goiás e até o Mato Grosso. No Rio Grande do Norte desenvolveu-se uma versão original - chamada "Subtradição Seridó", onde os animais são muito raros (somente tucanos e emas), e as figuras humanas apresentam um bico parecido com o de pássaros. Sua influência alcançou as terras baixas da Bolívia e da Colômbia orientais.
A Tradição Agreste substitui aos poucos a tradição Nordeste e seria a única representada na arte rupestre do sul do Piauí entre 6.000 e 2.000 anos atrás. Trata-se de grandes figuras monocromas, toscamente executadas, representando seres humanos isolados ("bonecões") ou animais pouco naturalistas, por vezes acompanhadas por impressões de mãos. Essa Tradição é considerada intrusiva no sul do Piauí, e seria originária de Pernambuco, onde essas figuras são muito mais numerosas.
PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 73-77.
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