Podemos habitar qualquer parte do mundo, mas somos todos
africanos. A África é o lar de nossos parentes mais próximos, os chimpanzés e
os gorilas, que por sua vez guardam uma semelhança mais direta conosco do que
com os orangotangos e outros primatas. E foi lá, há cerca de 6 milhões de anos,
que ocorreu a divisão entre a linha que deu origem aos chimpanzés e a que levou
aos humanos modernos. Desde então, diversas espécies humanóides (semelhantes
aos humanos) evoluíram, desenvolveram-se por algum tempo e depois
desapareceram. Quais dessas são nossas ancestrais diretas, e quais são apenas
parentes distantes, ainda não foi definido. O que se sabe, com certeza, é que
por volta de 150 mil anos atrás, nas amplas planícies relvadas da África
Oriental que chamamos de savana, houve seres humanos que se pareciam muito
conosco.
Povo dinka, África
Uma prova de que a África constitui o lar original da
espécie humana é fornecida pela análise genética. Existe mais variação genética
entre os habitantes da África do que em qualquer outra parte do planeta. É
exatamente o que se espera caso os seres humanos houvessem se originado, e
vivido ali por um longo tempo, antes de partirem para qualquer outro lugar. Se
ignorarmos os imigrantes de primeira e segunda geração, a diferença entre a composição
genética dos habitantes de algumas aldeias africanas separadas por trinta
quilômetros é maior do que a existente entre certas nações europeias.
Durante os séculos XIX e XX, quando os biólogos tendiam a
ser ocidentais de classes abastadas, confiantes na superioridade de seus
próprios grupos sociais, havia uma crença disseminada na origem distinta das
assim chamadas raças "branca", "negra" e
"amarela" da humanidade. Conhecemos atualmente muito mais sobre a
genética e as origens humanas, e podemos considerar o termo "raças"
produto da ignorância ou da ilusão.
Ainda falta muito para que sejamos capazes de construir uma
árvore genealógica que mostre a linha de descendência dos seres humanos desde
sua ramificação de 6 milhões de anos atrás. Sabemos, a partir de vestígios
fósseis, que em alguns momentos ao longo dos últimos 3 ou 4 milhões de anos
coexistiram diversas espécies de humanos. Mas esses vestígios - fragmentos de
crânios e ossadas incompletas - não são numerosos, e precisaremos de mais
vestígios antes de podermos estabelecer uma linha ancestral da humanidade.
Tendo-se em mente que apenas uma minúscula proporção dos seres humanos que
existiram em uma data tão recente quanto 100 mil anos atrás pode ter deixado
descendentes, as chances de que alguma antiga criatura ainda pode ser
descoberta seja literalmente um ancestral direto nosso são praticamente nulas.
Pode ser que algumas delas representem espécies que, coletivamente, foram
nossas ancestrais, mas essa suposição está longe de ser confirmada.
Vestígios de espécies pré-humanas primitivas foram
encontrados em diversas regiões no leste e no sudoeste da África. Essas
espécies extintas receberam nomes latinos conforme o sistema divisado no século
XVIII pelo naturalista sueco Carl von Linné, que é geralmente mais conhecido
por seu nome latinizado, Lineu. No sistema lineano, pode-se descrever qualquer
planta ou animal em duas partes. A primeira designa o gênero, ou tipo, e a
segunda, a espécie, ou a característica biológica precisa. Dingos, galgos e são-bernardos
pertencem ao gênero Canis, que significa cão. Mas os dingos são
classificados como uma espécie separada - Canis dingo -, ao
passo que galgos e são-bernardos são classificados como Canis
familiaris ("cão doméstico") e constituem duas variedades da
mesma espécie.
Quando chegou o momento de Lineu classificar os primatas
(lêmures, macacos, humanos etc.), ele colocou os seres humanos no gênero Homo (que
significa "humano") e gorilas e chimpanzés no gênero Gorilla e Pan,
respectivamente. Mas classificou os gorilas, chimpanzés e humanos na mesma
subordem, Anthropoidae (do grego, antropomorfo, de forma humana). Ao fazê-lo,
ele atentou contra as crenças religiosas de seu tempo, que diziam que os seres
humanos eram únicos na criação. De acordo com a fé cristã, baseada nos textos
bíblicos, os humanos foram criados "à imagem de Deus", "para
exercer seu domínio sobre todos os animais da Terra". Na opinião de Lineu,
os humanos não diferiam suficientemente dos grandes macacos para justificar
qualquer separação maior em sua descrição biológica.
Caso a genética já existisse nos dias de Lineu, ele jamais
teria colocado gorilas, macacos e humanos tão distantes. O chimpanzé comum e o
chimpanzé pigmeu (ou bonobo) compartilham 99,3 por cento de seus genes. Ambos
compartilham 98,4 por cento de seus genes com os humanos. Essa diferença de 1,6
por cento entre chimpanzés e humanos é apenas aproximadamente a metade da
diferença entre chimpanzés e humanos por um lado e gorilas por outro. Não resta
muita dúvida de que, se Lineu classificasse os primatas nos anos 1990, e não na
década de 1750, chimpanzés comuns, bonobos e humanos estariam incluídos no
mesmo gênero, Homo.
Os biólogos continuam a reservar a descrição Homo para
os humanos modernos e seus parentes extintos mais próximos. Algumas espécies
mais antigas são inseridas no gênero Australopithecus ("macaco
do sul"). Esses australopitecinos tinham cérebros um pouco maiores que os
dos chimpanzés. Eram dotados de braços compridos, o que presumivelmente
significava serem capazes de se locomover com facilidade entre as árvores, e,
como a maioria dos macacos, os machos eram muito maiores do que as fêmeas. Mas
eles, definitivamente, compartilhavam algumas características com o grupo
posterior do Homo, incluindo o andar ereto e os dentes frontais
menores. Essas espécies de algum modo desenvolveram o hábito de caminhar eretas
e proporcionaram as mudanças físicas que se fizeram acompanhar. [...]
Cerca de 4 milhões de anos atrás, havia uma espécie que
andava ereta, e era semelhante a um macaco. Conhecida como Australopithecus
afarensis, "macaco meridional de Afar" (uma região da Etiópia),
vivia na África Oriental. Essa é a espécie à qual "Lucy", o hominídeo
fóssil mais famoso do mundo, pertence. [...] Essa espécie, em média com cerca de 1,20
metro, ou uma espécie semelhante, deixou-nos uma evidência de seu hábito de
caminhar ereta. Perto da garganta de Olduvai, na Tanzânia, em 1978,
a antropóloga Mary Leakey descobriu três pares de pegadas com 3,7 milhões
de anos, que a princípio pertenceram a dois adultos e uma criança. Elas se
estendiam por 54 metros ao longo de uma extensão de cinza vulcânica
que uma chuva transformara em cimento de secagem rápida.
Dois e meio milhões de anos atrás, uma criatura de aspecto
mais próximo do ser humano moderno - o Homo habilis - viveu no
Quênia e na Tanzânia. O número de vestígios fósseis classificados como
pertencentes a essa espécie é pequeno, e alguns paleontólogos questionam se
representam uma espécie identificável. Presumindo-se que sim, eles sugerem um
tamanho médio de cérebro de 655 centímetros cúbicos, cerca de 40 por
cento maior que o do chimpanzé, mas menos da metade da medida de um humano
moderno. Essas criaturas provavelmente apresentavam comunicação rudimentar.
[...] Pelas evidências, é possível que as pessoas identificadas como Homo
habilis tenham cruzado a fronteira que separa a comunicação animal da
fala humana.
O Homo habilis era também um fabricante de
ferramentas. [...] Embora muito simples na forma, essas ferramentas
representaram um avanço na prática de espécies anteriores que se valiam delas.
[...]
O Homo habilis foi uma espécie que viveu
por cerca de um milhão de anos, e se confinou à África, assim como todas as
criaturas humanoides anteriores a 1,5 milhão de anos. A primeira espécie a se
aventurar fora da África parece ter sido o Homo erectus. Os
vestígios mais antigos dessa espécie, datando de cerca de 1,6 milhão de anos,
são encontrados na África. Mais tarde, ela se propagou amplamente, e novas
descobertas foram realizadas por toda a Europa e Ásia. Além de se difundir
bastante, o Homo erectus foi outras espécie que perdurou.
Fósseis que datam de um período recente, 200 mil anos atrás, foram encontrados
na China, em Java e no Cáucaso, o que dá a entender que houve pessoas desse
tipo vivendo em alguma parte do mundo por mais ou menos 1,5 milhão de anos.
Dois dos fósseis humanoides mais famosos, o "Homem de
Java" e o "Homem de Pequim", pertencem a essa espécie. [...]
Além do uso do fogo, o Homo erectus fabricava
ferramentas moderadamente sofisticadas, produzindo bifaces ("machados de
mão") e uma variedade de utensílios rudemente construídos a partir de
pederneira, sílex e quartzito. Tanto em altura quanto em tamanho do cérebro,
o Homo erectus se revelo algo a meio caminho entre o Homo
habilis e os humanos modernos, e a espécie muito possivelmente tinha
uma capacidade de fala razoavelmente bem desenvolvida [...].
[...]
Não se sabe se o Homo erectus foi um
ancestral direto dos humanos modernos, ou se a ascendência sapiens e
a erectus derivaram separadamente de uma espécie ancestral
comum (Homo habilis, ou algum parente próximo) em algum ponto entre um e
dois milhões de anos atrás. [...] Em termos de cronologia, a transição do Homo
erectus para o Homo sapiens, se foi mesmo isso que ocorreu,
provavelmente aconteceu há mais de 500 mil anos. Vestígios fósseis dessa época
descobertos na África exibem uma mistura de características erectus e sapiens.
Não é senão em torno de 150 mil a 120 mil anos atrás que
encontramos, na África, os vestígios de criaturas cuja estrutura corporal é tão
similar à nossa que biólogos se sentem à vontade para incluí-las na
espécie Homo sapiens e em rotulá-las como "humanos
modernos". Quando querem ser bem precisos em suas classificações, biólogos
os chamam de Homo sapiens sapiens, para distingui-los das versões
anteriores de Homo sapiens, que andaram pelo mundo cerca de 300 mil
ou 400 mil anos atrás. [...]
[...] A evolução humana não parou há 150 mil anos. Nossa
espécie sem dúvida mudou desde então, e não apenas de maneira superficialmente
óbvia, como o desenvolvimento de diferentes cores de pele e texturas de pelos.
Também deve ter havido transformações significativas nas capacidades
intelectuais e verbais. [...]
[...] Só é possível conjeturar quanto à extensão de suas
capacidades linguísticas, sua visão de si mesmos, suas crenças e práticas
religiosas, sua organização social, suas aptidões artísticas e quanto ao papel
que a música e a dança desempenhavam em suas vidas. [...] os humanos, ao longo
de toda a História, incluindo os povos nativos da Austrália e tribos isoladas
por toda parte, têm apresentado essas características, de modo que elas devem
ter feito parte das vidas de nossos ancestrais muito antes que um determinado
grupo deles deixasse a África, cerca de 60 mil anos atrás.
Duas escolas de pensamento contemporâneas opostas competem
entre si para interpretar a evidência demasiado limitada de que dispomos. Uma
teoria está resumida na expressão chinesa "o grande salto adiante",
usada nos anos 1990 pelo fisiologista e biólogo evolucionário americano Jared
Diamond em seu livro The Rise and Fall the Third Chimpanze. Seus
adeptos acreditam que em algum momento em torno de 50 mil anos atrás houve
uma step-change (escalonamento súbito) na evolução humana,
disparada por mudanças genéticas que provocaram um "rewiring" (religação
elétrica) do cérebro humano. A evidência que a sustenta é um tanto quanto
escassa, bem como a evidência para refutá-la. As pessoas que compartilham dessa
visão atribuem grande importância à variedade muito maior de ferramentas de
pedra e de osso empregadas em torno de 50.000 a.C. e às habilidades
técnicas envolvidas em sua manufatura. Elas também apontam para o que parece
ser um repentino florescimento do talento artístico, sobretudo o que se vê nas
magníficas pinturas de cavernas em lugares como Altamira, na Espanha, e
Lascaux, na França, feitas por povos da cultura europeia conhecida como
cro-magnon de cerca de 30.000 a.C.
[...]
A escola de pensamento oposta é representada pelo psicólogo
evolucionário Robin Dunbar da Universidade de Liverpool, que defende em seu
livro The Human Story que a evidência sustentará igualmente a
visão de que o desenvolvimento da linguagem, da autoconsciência e da capacidade
intelectual teve lugar gradualmente durante um período muito mais longo. [...]
A diferença entre nossos ancestrais de 100 mil a 150 mil anos atrás e nós passa
a ser mais de grau do que de qualidade.
Tanto a genética como a neurociência são ciências recentes,
ainda, e, essas questões serão provavelmente muito mais bem compreendidas em
gerações futuras. É razoável esperar que até lá tenhamos coletado uma
quantidade de evidência fóssil bem mais informativa. [...]
AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a
150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 17-25.
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