Cena do filme "Ligações perigosas", dir. Sthefen Frears
O neoplatonismo do Renascimento teria sido para as elites cultas um meio de esquecer e empurrar para baixo do tapete a repressão sexual à qual deviam se habituar. Não se casar jamais por prazer e não casar jamais sem o consentimento daqueles a quem se devia obediência eram leis nas casas aristocráticas. O casamento era um negócio de longa duração que não podia começar sem a opinião de parentes e amigos. A bem dizer, atrás da concepção cristã do casamento, há a hebraica. Ambas preocupadas em eliminar o amor-paixão do casamento e a impor à mulher sua obediência ao marido. O lugar do amor ficava sendo, portanto, a literatura. Literatura em que, ao contrário, a mulher reinava e era adorada, distribuía ou recusava favores livremente. Mas sempre em um cenário em que se bifurcavam dois amores: o de fora e o de dentro do matrimônio. E o de fora, levando, invariavelmente, a dolorosas dificuldades.
No teatro elisabetano, por exemplo, quando se apresenta a ideia de um poderoso amor, ao mesmo tempo carnal e espiritual, ele se liga diretamente ao tema da paixão e da morte. Lembram-se de Romeu e Julieta? A maior parte dos autores dos Tempos Modernos, dos poetas de corte aos moralistas populares, todos bordaram, com preciosismo ou realismo, variações sobre esses pontos. Até fundindo-as. Mas há uma tônica quase permanente: o poder do amor, a atração mútua dos corpos ou o perigo representado pelos charmes femininos [...].
Existem, sem dúvida, exceções. Lope de Vega, que domina o teatro do Século de Ouro espanhol, dá um lugar ao amor em suas múltiplas comédias. Ele figura ao lado da busca pelo prazer, característica de seu tempo. É o prazer o elemento que permite o triunfo do casal sobre todos os obstáculos jurídicos ou humanos que se oponham ao seu desabrochar. Mas a maioria dos escritores fica com Cervantes que, em suas Novelas exemplares, de 1613, prefere celebrar os amores honestos e pudicos, mesmo os de uma pequena cigana ou de uma servente de albergue, às paixões sem freios.
Os progressos da repressão sexual tiveram algumas consequências interessantes. Uma delas foi a de levar a sociedade ocidental, em princípio condenada a respeitar a decência e o pudor, a uma obsessão erótica ligada, muitas vezes, ao culto clandestino da pornografia. O início do Renascimento expõe, sem disfarces, as virtudes do sexo assim como o charme de seus preparativos. E o faz sem cerimônias. Os aspectos carnais do amor se exprimem com franqueza radical; os poetas que buscam sem falso pudor as alegrias do leito ou do beijo e confessam preferi-los às carantonhas de devoção parecem, em sua sinceridade, escandalosos. Aproveitando-se da revalorização da Antiguidade, artistas variados tentaram unir a inconstância do apetite erótico com a filosofia de que era preciso viver o momento presente.
As diversas etapas do amor sensual ou do desespero amoroso nunca foram tão bem cantadas como o fizeram, por exemplo, Ronsard e Shakespeare. São autores que celebram o êxtase nascido da satisfação do desejo. O Renascimento italiano, por sua vez, inaugurou o culto alegre e realista da licença amorosa. Em suas rimas voluptuosas, a beleza que se venera com toda a liberdade é a do Paraíso antes do pecado [...]. Mas a ordem moral burguesa, que então se instalava, empurrava para baixo do tapete o domínio dos escritos proibidos, o quadro da nudez e de corpos enlaçados. Enquanto a Vênus de Botticelli despia-se na tela, nos quartos, os corpos se cobriam.
O paradoxo da Reforma Católica foi o de coincidir, na Europa aristocrática, com os desenvolvimentos da civilização renascentista. Misticismo e pecado, normas e desregramento coabitavam na prática e nas representações. Sermões tenebrosos sobre o Juízo Final conviviam com uma literatura erótica cuja especificidade era o gênero pastoral, caro às cortes que se deliciavam em ouvir ou ler sobre amores de pastores e pastoras. Eles convidavam os espectadores e leitores a gozar o melhor de sua juventude, a viver plenamente, a beber, a comer, a folgar. Entre céu e inferno, a aproveitar cada dia, antes que a morte os levasse. Sua mensagem era direta: terapia de alegria e de contentamento pessoal, o bom uso do sexo não dependia, senão, da disposição física dos parceiros.
Mas os séculos ditos "modernos" do Renascimento não foram tão modernos, assim. Um fosso era então cavado: de um lado os sentimentos, do outro, a sexualidade. Mulheres jovens de elite eram vendidas, como qualquer animal, nos mercados matrimoniais. Excluía-se o amor dessas transações. Proibiam-se as relações sexuais antes do casamento. Instituíram-se camisolas de dormir para ambos os sexos. [...] Para as igrejas cristãs, toda a relação sexual que não tivesse por fim imediato à procriação se confundia com prostituição. Em toda a Europa, as autoridades religiosas têm sucesso em transformar o ato sexual e qualquer atrativo feminino em tentação diabólica. Na Itália [...] condenava-se a morte os homens que beijassem uma mulher casada e, na Inglaterra, decapitavam-se as adúlteras; em Portugal, queimavam-se, em praça pública, os sodomitas.
Durante o século XVII, autores como Descartes, filósofo francês, tentam explicar a natureza exata do amor como fruto de uma emoção da alma, emoção diversa da agitação do desejo. O amor: oblação, dedicação e abandono de si. O desejo: posse, narcisismo, egoísmo. [...] O erotismo é visto como ruinoso e não foram poucos os que tentaram sublinhar a que ponto uma paixão podia ser fatal. O amor no casamento, por sua vez, consolidava-se na representação da "perfeita amizade" ou de união, no coração, de duas almas por meio do amor divino. O sexo era, por vezes, mencionado, mas, na amizade, a razão tinha de dominar o ardor da carne. E a razão era, nesse caso, vista como uma força ou benção divina.
Estudando a vida privada na Europa moderna, o historiador Orest Ranum percebeu que se o casamento envolvia a mistura de corpos, isso ocorria menos por amor apaixonado do que por dever; para garantir a procriação e a continuidade das famílias. As relações sexuais não eram necessariamente íntimas ou amigáveis. O ato requeria apenas privacidade. [...]
[...]
[...] Na época das Luzes o casamento foi objeto de um movimento literário ambíguo. Inspirada pela mitologia medieval e cortesã, a paixão pré-romântica, ilustrada por Werther de Goethe, publicado em 1774, insistia em punir a sexualidade. Quando o filósofo Rousseau, por sua vez, introduz o que pensava sobre o amor para uma sociedade aristocrática em busca de prazeres, suas preocupações de valorizar a inocência e a virtude apenas reiteram uma longa tradição de idealização, correspondente, sobretudo, à vontade de esconder, se não de esquecer, o ato carnal.
Outra corrente de letras europeias, contudo, celebrou a sexualidade com bem menos recato. No mesmo século XVIII, textos poéticos e literários exprimem os desejos de uma elite obcecada pela busca de volúpia sensual e do uso das técnicas eróticas mais perfeitas. Fruto da repressão sexual que suprimia até o nu da pintura - tão exposto no Renascimento -, essa sensualidade cerebral exacerbava o mito intelectual da virilidade, do qual Don Juan é um símbolo. Falante e galante, esse século só tratava de amor nos salões aristocráticos e, mesmo assim, sob as mais estritas regras de etiqueta cortesã. [...] O laço entre a hipocrisia das convenções, próprias às camadas ricas, e a tensão erótica que elas contribuem a reforçar, fornecerá o tema essencial para a libertinagem. Inspirada pela máscara da boa educação, essa retórica exprimia os constrangimentos de uma sociedade galante que matava o amor ao transformá-lo em vício. Falar de sexo tornou-se uma compensação agradável para o vazio espiritual de uma elite. O retrato mais nítido desta situação foi feito por Choderlos de Laclos, em seu As ligações perigosas.
[...]
Por volta de 1700, as cortes galantes, os chamados "salões preciosos" e mesmo os contos de fadas - muito na moda, então - realimentam o ideal do amor impossível. [...]
Os escritores franceses do século XVIII vão impor um novo modo de representar a paixão. Malgrado a presença de textos libertinos, a época da Revolução Francesa daria visibilidade ao culto romântico da paixão, ligando-o mais estreitamente à dor do que à felicidade. [...]
PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 78-85.
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