"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 1 de março de 2013

O cenário da História


Bosquímanos, caçadores africanos

O cenário da história é o cenário da atividade humana: o meio físico em que se desenvolve a vida dos homens e das mulheres. Seu estudo comporta um duplo enfoque: o das relações do homem com o meio e o da identificação das suas atividades. Antes, os historiadores ocupavam-se apenas da distribuição humana no espaço: da "geografia histórica". Nos últimos anos, porém, aprenderam a ver a importância da relação transformadora do homem com o meio natural que o rodeia.

[...]

Talvez haja quem pense que a relação do homem com seu meio físico é uma questão que deve ser considerada do ponto de vista das ciências naturais e que tem pouco a ver com a história. Não é assim. Não só porque o meio é um condicionante da evolução das sociedades humanas - por exemplo, a abundância ou escassez de combustíveis naturais trouxe implicações em diversos países -, mas também porque as sociedades influem, por sua vez, em seu meio: as relações do homem com o meio devem ser estudadas também, sob ponto de vista cultural e histórico.

Os homens de nossa cultura - a dos europeus e de seus descendentes instalados em outros continentes - viram, tradicionalmente, a natureza como algo que lhes havia sido dado para estar a seu serviço e, não como um meio de que formavam parte: a conquista e o domínio da natureza apresentam-se normalmente como sinais indiscutíveis de progresso. Há outras civilizações, ao contrário, que aprenderam a viver em equilíbrio mais efetivo com seu meio, a utilizá-lo de uma forma distinta, menos exploradora. Esse é o caso, por exemplo, das civilizações americanas anteriores à conquista espanhola, como mostra a utilização combinada de pisos ecológicos dos Andes pelos povos peruanos, a forma em que os indígenas da Amazônia aprenderam a explorar a mata com critérios conservacionistas ou à agricultura dos maias.

A ação do homem sobre o meio é muito complexa, porém, não se pode dizer que os europeus procederam com a sensatez neste terreno. Quando se fala dos "intercâmbios" entre a Europa e os continentes "descobertos", por exemplo, nos limitamos a fazer um inventário das espécies animais e vegetais que passaram de um a outro. Porém, a atuação dos europeus sobre o meio físico das novas terras a que chegaram foi muito além da introdução de espécies úteis, levando pragas, ervas daninhas e presentes de valor duvidoso, como o rato ou como alguns animais domésticos, que se tornaram selvagens em muitos lugares, como os cavalos e os cachorros [...]. No pampa argentino, só a quarta parte das plantas que crescem espontaneamente são nativas. As ervas daninhas foram um elemento essencial do imperialismo ecológico europeu [...]

Quando dizemos que os europeus adaptaram o ecossistema dos outros continentes às suas necessidades, estamos entendendo que ocorreu a introdução de uma agricultura mais avançada em substituição a uma exploração mais primitiva (é, por exemplo, o argumento utilizado para justificar a expoliação e o extermínio dos índios norte-americanos). Frequentemente não foi assim. Em locais como o México e o Peru, os sistemas agrários indígenas estavam adaptados ao meio e às mudanças imprudentes realizadas pelos colonizadores provocaram um retrocesso. [...]

Tudo isso deve servir ao historiador para que ele compreenda que a relação do homem com a natureza é muito complexa. Não podemos nos conformar em vê-lo como um conquistador que luta para dominá-la, nem basta deplorar o impacto nocivo de sua intervenção; devemos esforçar-nos em entender que, entre o homem e o meio, há uma relação de simbiose, ou melhor, de pertencimento. Que o homem está na natureza, porque é parte dela: que sua própria evolução é estreitamente delimitada pelas possibilidades que lhe oferece o meio em que vive. Não poderíamos entender muitos episódios de ascensão e decadência dos povos na história se deixássemos de considerar informações tão essenciais como as que se referem às relações das sociedades com seu meio.

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru, SP: EDUSC, 2000. p. 9, 31-33.

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